Há dois meses, estávamos no fim
do ano. Preparativos, correrias, afazeres. Tudo para que, na noite do dia 24 de
dezembro, a nossa ceia familiar estivesse pronta e, desta forma, pudéssemos nos
reunir com aqueles a quem amamos e brindarmos o Natal, o ressurgimento, o
nascimento. E na semana seguinte, os mesmos preparativos para recebermos aquele
que batia à nossa porta: o Ano Novo.
Independentemente da religião de
cada um, se é que a temos, e da crença que vai na mente e no coração de cada um
de nós, o fato é que, nestas duas épocas do ano, nos dedicamos mais àquilo que
verdadeiramente importa: união, amor, fraternidade e, para os mais atentos, reflexão e um reposicionar-se diante à vida.
O ano inicia. Aquele sentimento
de renovação e de desejo de coisas boas que buscamos para nós e que também desejamos
ao outro, à meia-noite, parece que vai caindo no desuso e no esquecimento, e
todos aqueles votos de paz, amor, fraternidade, união e prosperidade vão
reocupando os lugares do abstrato nas nossas vidas. Não um abstrato que tem
força própria de existência e que se materializa sem a nossa interferência, mas
um abstrato intangível, e mais que isto: um abstrato que não se alcança. Obviamente
sem generalizações. Cada um é cada um. Há muitas pessoas que se esforçam, e
muito, para carregarem este dever e esta vontade de renovação ao longo do ano.
Mas há outros tantos que se esforçam, e muito, para que a teoria sempre fique
bem distante da prática. Aqueles que possuem a teoria afiada na ponta da
língua, mas os braços curtos para alcançarem o próximo, assim como se deixarem
alcançar também pelo outro.
E é nessa hora que uma palavra
simples, sem muitos adereços e brilhos, pouco utilizada e até menosprezada,
entra em cena: a reflexão.
Reflexão conversa com refletir
que conversa com reflexo. Todas da
mesma família. Todas com a mesma provocação. Como coincidências não existem,
acredito que elas queiram nos dizer algo. Mas será preciso dedicar os nossos
ouvidos para ouvi-las.
Reflexão é um exame a respeito de
nós mesmos. É um voltar para trás
para refletir. É um pensar sobre o nosso comportamento, nossas atitudes. É uma
investigação do investigado, no caso, a gente mesmo. Reflexão é, portanto, uma
postura firme de desejo de reposicionar-se na vida. Refletir é a ação em si. É
colocar em prática o nosso pensar, mudar a direção e, acima de tudo, arcar com
os custos disto. E reflexo é o produto da nossa reflexão, que pode ser aquilo no
que acreditamos ser, não necessariamente aquilo que somos. Reflexo, portanto, é
aquela imagem que volta para nós mesmos ao passarmos diante um espelho.
O que enxergamos ali? Para
alterarmos aquele reflexo será preciso efetuarmos modificações no nosso
refletir, no nosso agir. E assim, nossa reflexão, este exame a respeito de nós,
será mais eficiente e sustentável. A imagem vista no espelho será mais
amigável. E apesar de ela nos duplicar (somos dois ao nos vermos através do
espelho), isto já não será mais problema.
A reflexão deve ser um exercício
diário se quisermos sair dos cumprimentos formais das festas de fim de ano. E
oportunidades para estas reflexões não nos faltam.
imagem tirada da internet
Estes encontros anuais com a boa
fala, com as boas palavras e com os bons desejos se mostram insuficientes.
Basta olharmos os resultados. As comemorações de Natal e de Ano Novo não dão
conta mais dos nossos absurdos e das nossas demandas. É preciso estabelecer
mais paradas para refletirmos nossas condutas e, por consequência, nossos
reflexos no mundo e em nós mesmos.
O trabalho é meu. A responsabilidade é minha. O dever é meu. As
conquistas são nossas.
Toda reflexão começa no nível
individual, mas o produto dela se materializa no coletivo. E para isto, será
preciso espalharmos espelhos aonde poderemos nos enxergar sem rodeios, entraves
e atalhos. Os nossos bastidores são descortinados e os nossos reais interesses
se mostram.
Espelhos apenas refletem quem
somos, porém em dobro. Se há incômodo com o que se vê lá, estejamos certos de
que a vida está nos fazendo um convite para uma reflexão, cujo único objetivo
será o de apaziguar, acalmar e compreender os nossos reflexos. Acolhidos, quem
sabe eles não nos dizem o que fazem lá? Quem sabe eles não revelam o motivo de
surgirem para nós, mesmo que a nossa revelia?
Refletir, fazer reflexões e tomar
contato com os nossos reflexos não é das tarefas mais fáceis. Mas se deixarmos
estas tarefas para o fim do ano, apenas porque a boa educação manda, as coisas
ficarão mais difíceis ainda. Refletir é uma das formas de dedicarmos amor a nós
mesmos. E de, mesmo sem percebermos, sermos pessoas mais felizes que não são
aquelas que possuem muitas coisas, mas sim, as de poucas necessidades. E as
nossas reflexões diárias nos ajudam a eliminar as nossas necessidades
desnecessárias e descabidas. Ajudam-nos a apreciar o sentido, a direção, o
foco, para que a gente acerte o caminho logo do início. E mesmo se errarmos, será
mais fácil retomarmos o caminho, se a reflexão estiver fazendo parte da nossa
rotina.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento que diz:
“passo a passo, anda-se, num dia, um bom pedaço”.
Que bons pedaços sempre façam
parte de nossa caminhada. Bons pedaços calçados, pensados e firmes no estar no
mundo. E quem sabe, um dia, de pés firmes e calçados, olharemos no espelho e estaremos
em paz com os nossos reflexos. Mesmo cansados pelo caminhar, felizes pelo avançar,
agora a longos e bons pedaços.