terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Somos o nosso espelho

Há dois meses, estávamos no fim do ano. Preparativos, correrias, afazeres. Tudo para que, na noite do dia 24 de dezembro, a nossa ceia familiar estivesse pronta e, desta forma, pudéssemos nos reunir com aqueles a quem amamos e brindarmos o Natal, o ressurgimento, o nascimento. E na semana seguinte, os mesmos preparativos para recebermos aquele que batia à nossa porta: o Ano Novo.

Independentemente da religião de cada um, se é que a temos, e da crença que vai na mente e no coração de cada um de nós, o fato é que, nestas duas épocas do ano, nos dedicamos mais àquilo que verdadeiramente importa: união, amor, fraternidade e, para os mais atentos, reflexão e um reposicionar-se diante à vida.

O ano inicia. Aquele sentimento de renovação e de desejo de coisas boas que buscamos para nós e que também desejamos ao outro, à meia-noite, parece que vai caindo no desuso e no esquecimento, e todos aqueles votos de paz, amor, fraternidade, união e prosperidade vão reocupando os lugares do abstrato nas nossas vidas. Não um abstrato que tem força própria de existência e que se materializa sem a nossa interferência, mas um abstrato intangível, e mais que isto: um abstrato que não se alcança. Obviamente sem generalizações. Cada um é cada um. Há muitas pessoas que se esforçam, e muito, para carregarem este dever e esta vontade de renovação ao longo do ano. Mas há outros tantos que se esforçam, e muito, para que a teoria sempre fique bem distante da prática. Aqueles que possuem a teoria afiada na ponta da língua, mas os braços curtos para alcançarem o próximo, assim como se deixarem alcançar também pelo outro.

E é nessa hora que uma palavra simples, sem muitos adereços e brilhos, pouco utilizada e até menosprezada, entra em cena: a reflexão.

Reflexão conversa com refletir que conversa com reflexo. Todas da mesma família. Todas com a mesma provocação. Como coincidências não existem, acredito que elas queiram nos dizer algo. Mas será preciso dedicar os nossos ouvidos para ouvi-las.

Reflexão é um exame a respeito de nós mesmos. É um voltar para trás para refletir. É um pensar sobre o nosso comportamento, nossas atitudes. É uma investigação do investigado, no caso, a gente mesmo. Reflexão é, portanto, uma postura firme de desejo de reposicionar-se na vida. Refletir é a ação em si. É colocar em prática o nosso pensar, mudar a direção e, acima de tudo, arcar com os custos disto. E reflexo é o produto da nossa reflexão, que pode ser aquilo no que acreditamos ser, não necessariamente aquilo que somos. Reflexo, portanto, é aquela imagem que volta para nós mesmos ao passarmos diante um espelho.

O que enxergamos ali? Para alterarmos aquele reflexo será preciso efetuarmos modificações no nosso refletir, no nosso agir. E assim, nossa reflexão, este exame a respeito de nós, será mais eficiente e sustentável. A imagem vista no espelho será mais amigável. E apesar de ela nos duplicar (somos dois ao nos vermos através do espelho), isto já não será mais problema.

A reflexão deve ser um exercício diário se quisermos sair dos cumprimentos formais das festas de fim de ano. E oportunidades para estas reflexões não nos faltam.

imagem tirada da internet

Estes encontros anuais com a boa fala, com as boas palavras e com os bons desejos se mostram insuficientes. Basta olharmos os resultados. As comemorações de Natal e de Ano Novo não dão conta mais dos nossos absurdos e das nossas demandas. É preciso estabelecer mais paradas para refletirmos nossas condutas e, por consequência, nossos reflexos no mundo e em nós mesmos.

O trabalho é meu. A responsabilidade é minha. O dever é meu. As conquistas são nossas.

Toda reflexão começa no nível individual, mas o produto dela se materializa no coletivo. E para isto, será preciso espalharmos espelhos aonde poderemos nos enxergar sem rodeios, entraves e atalhos. Os nossos bastidores são descortinados e os nossos reais interesses se mostram.

Espelhos apenas refletem quem somos, porém em dobro. Se há incômodo com o que se vê lá, estejamos certos de que a vida está nos fazendo um convite para uma reflexão, cujo único objetivo será o de apaziguar, acalmar e compreender os nossos reflexos. Acolhidos, quem sabe eles não nos dizem o que fazem lá? Quem sabe eles não revelam o motivo de surgirem para nós, mesmo que a nossa revelia?

Refletir, fazer reflexões e tomar contato com os nossos reflexos não é das tarefas mais fáceis. Mas se deixarmos estas tarefas para o fim do ano, apenas porque a boa educação manda, as coisas ficarão mais difíceis ainda. Refletir é uma das formas de dedicarmos amor a nós mesmos. E de, mesmo sem percebermos, sermos pessoas mais felizes que não são aquelas que possuem muitas coisas, mas sim, as de poucas necessidades. E as nossas reflexões diárias nos ajudam a eliminar as nossas necessidades desnecessárias e descabidas. Ajudam-nos a apreciar o sentido, a direção, o foco, para que a gente acerte o caminho logo do início. E mesmo se errarmos, será mais fácil retomarmos o caminho, se a reflexão estiver fazendo parte da nossa rotina.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento que diz:

“passo a passo, anda-se, num dia, um bom pedaço”.

Que bons pedaços sempre façam parte de nossa caminhada. Bons pedaços calçados, pensados e firmes no estar no mundo. E quem sabe, um dia, de pés firmes e calçados, olharemos no espelho e estaremos em paz com os nossos reflexos. Mesmo cansados pelo caminhar, felizes pelo avançar, agora a longos e bons pedaços.