Há assuntos que não se esgotam. E
velhice é um deles. Um clássico da nossa cultura. E o que seria um clássico? É
aquilo que nunca esgota o que precisa ser dito. Sempre há o que dizer. Sempre
há reflexões a serem feitas sobre algo que nos incomoda.
Velhice, na nossa sociedade, é
sinônimo de derrota. Um convite discreto da sociedade pedindo para você se
retirar. Aposentamos as pessoas porque estão velhas. Não servem mais.
Obviamente que não dizemos com esta franqueza. Mas é assim que pensamos,
infelizmente. A palavra aposentadoria tem em sua matriz a palavra aposento que,
antigamente e até hoje, é o lugar da casa destinado ao descanso, ao pousar, ao
repousar. O “a” de aposentadoria significa junto de. Portanto, aposentar é,
literalmente, deixar algo ou alguém aposentando, descansando junto de um cômodo
da casa: o aposento. E com o passar do tempo, além do significado inicial,
também ganhou reforços pejorativos de inatividade, exclusão, retirada de
circulação, isolamento.
Uma passada na História sempre nos traz incômodos. A História guarda a
nossa memória.
Os que ainda não chegaram lá, se
auto intitulam sabedores do que é o melhor, e assim, estas pessoas são
colocadas à margem. A vida segue, mas agora o bilhete delas é apenas como
expectadoras, como visitantes abelhudos que, muitas vezes, não são bem-vindos.
Mas ainda bem que há pessoas, acredito, que não prestam muita atenção
a estes conceitos criados por aqueles que nada sabem da vida.
vídeo tirado da internet
Há que diferenciarmos velho de idoso. Velho é aquilo que perdeu a vitalidade. Um sapato e uma
roupa ficam velhos. É um estado daquilo que foi gasto e usado pelo tempo.
Aquele que foi utilizado e visitado pelo tempo ficou velho. Nós também
envelhecemos. As rugas surgem, algumas dores nos visitam e a limitação física
nos dá sinais de que há tempos estamos aqui. Idoso é aquele que, apesar da
velhice impressa na pele e na limitação física, a vitalidade permanece. A vida
se sobrepõe e se impõe. Vivemos. Seguimos. Envelhecemos por causa do excesso da
idade, mas a vitalidade e a dinâmica da vida se colocam acima disto, apesar das
dificuldades que o excesso de idade nos apresenta.
Quando pensamos sobre isto, ficamos pequenos diante de tantos aposentos
lotados com o nosso consentimento. A nossa pequenez se agiganta diante tanta
ignorância. Afastamos aquele que poderia nos ensinar a ser maiores. Mas parece
que gostamos deste lugar pequeno que ocupamos por causa da nossa falta de
disposição para o crescimento.
É preciso revisitar conceitos,
irmos além. Somos reféns de nós mesmos. A condição na qual vivemos cria
impeditivos para nós próprios.
O avançado da idade nos incomoda
pois dá trabalho pensar sobre. A velhice e a sua vitalidade nos trazem
espelhos, mas que insistimos em cobri-los. Sofremos de certa alienação e
douramos o nosso discurso para mostrarmos o que, na verdade, nos falta.
As catracas servem para evitar a saída ou para impedir a entrada? Uma
esquizofrenia que não tem resposta. Não há como responder a esta pergunta. O
nosso discurso de valorização do idoso existe por causa das leis que nos obrigam
a isso ou por causa do nosso respeito sincero? Voltamos à esquizofrenia das
catracas. Assunto complexo porque envolve toda a nossa estrutura de ser num mundo
que insiste em nos vigiar, como diz a música.
Aquele casal do vídeo dança
daquela forma não somente pela disposição e condição física. Mas sim por
acreditar que o rendimento deles nunca poderá ser maior que a imagem que
possuem de si. Como não se colocam na condição de velhos, no sentido de
ausência de vida, seguem e continuam, apesar do coro lá fora dizer o contrário.
Apesar de os esforços coletivos serem eficientes e persistentes para que eles
sigam na fila em direção aos aposentos.
Não se trata de fazer de conta que a idade não nos alcançou, ou de
fazer aquilo de que está acima de nossas possibilidades. Mas sim de continuar.
Um continuar com paradas mais
frequentes, um continuar com cansaços mais evidentes, um continuar com um
intervalo para engolir o remédio. Mas, acima de tudo, um continuar.
Quem segue, recobra os sentidos
da própria trajetória. Dá a volta e segue na estrada há tempos percorrida. Um
continuar permeado pela dignidade e pelo respeito às necessidades que se fazem
no caminhar.
Uma dança com passos mais
moderados: mas ainda assim é uma dança. Um casal que faz contornos mais
comedidos: mas ainda assim é uma dança. Um seguir colocando tijolos na própria
construção.
O avançar da idade exige
recortes, revisitações e readaptações. Mas em momento algum este avançar de
idade exige estagnação e aposentos. Aliás, não há, atrás das portas, um lugar
pronto para pendurarmos as nossas chuteiras. Quem coloca um prego lá somos nós
mesmos ou aqueles que acreditam ter este poder. São os doentes do caminho. Aqueles
que buscam, o tempo todo, elevadores no caminho.
Seguir respeitando o cansaço de
nossas pernas. Dançando uma música mais lenta. Pedindo para alguém falar mais
alto. Trabalhando menos. Mas seguir. Seguir
não é uma obrigação, mas um convite.
O jovem dança mais rápido. Isto é
verdade. Mas é verdade também que ele conhece poucos ritmos, o que fará falta
na hora de uma escolha. Ele mais facilmente cairá no vício de exigir respostas
rápidas da vida. Mas ela ensina. De forma dura, mas ensina.
O idoso dança mais devagar. Isto
é verdade. Mas ele conhece inúmeros ritmos que o possibilita fazer melhores e
sábias escolhas. Dificilmente ele exigirá mais do que a vida poderá dar. Fez as
pazes com ela. Brigar com a vida é ainda um ímpeto daquele que está aqui há
pouco tempo.
O idoso costuma ser colocado de
lado, geralmente nos cantos, nas pontas, nas celas disfarçadas de lar. O
conhecimento que ele tem é visto como ultrapassado. Quando ele fala, outras
vozes o calam. Nem a nossa pseudo educação conseguimos mostrar.
Para valorizar a idade, a
velhice, o idoso, há que se compreender e aceitar a nossa condição de finitos.
A finitude é uma condição do humano. Queremos ignorar a nossa própria condição.
Aposentamos as pessoas porque é uma das
maneiras de tirarmos o relógio da nossa frente. Um idoso na nossa frente
significa a certeza da passagem do tempo. Excluir a velhice da nossa realidade
não a valorizando é uma das formas de não lidarmos com a nossa própria
realidade.
Temos a crença na desvalorização
do idoso, do avançar da idade. E a função da crença é se perpetuar. Por isso,
temos uma sociedade de doentes que busca algo que jamais encontrará: o prazer
da própria companhia. Aquele que caminha junto de si, independentemente da
idade, mas respeitando as novas exigências, segue em paz consigo.
É preciso mudarmos as nossas
referências para que possamos mudar o nosso comportamento.
A idade avança e com ela conquistamos
dois valiosos passos que somente as pernas mais cansadas poderiam alcançar: a
experiência e a autonomia. Apesar de o mundo dizer o contrário. Não há como
alcançarmos estes dois patamares de excelência antes do avançar dos relógios. A
juventude que nos perdoe.
O bom de ser jovem é que o
relógio está a nosso favor. Mas que também avança. A juventude é um lugar de
escuta da vida. Mas, antes de tudo, um lugar de cobranças do que há por fazer.
O espelho ainda mostra o viço da pele, mas antes disto, mostra o que ainda não
foi feito, o que é muito mais importante do que a luminosidade de qualquer
pele. Para os lúcidos, a juventude é um lugar do fazer. Dos espaços vazios que
precisam ser preenchidos com vozes e com ações. Atitudes e construções.
A beleza da idade é que, apesar
de o relógio caminhar mais rápido, a lucidez de saber valorizar o sol da manhã
e da tarde é vívida e presente. O avançar do tempo traz de presente a nossa
presença no hoje. Não no ontem e nem no amanhã. O ontem nos construiu. O amanhã
nos construirá. Mas o hoje é quem possui a caneta em mãos. A lucidez da idade
nos faz desviar dos vícios a caminho das virtudes. Uma valorização do tempo
nasce em nós. Deixamos de participar de brigas, de correr atrás delas. As lutas
passam a ser seletivas.
Vivemos oportunidades de
reavaliação de nós mesmos e, consequentemente, de conceitos. Nosso núcleo de
existência é o inacabamento. Somos inconclusos.
O excesso de idade não deve ser uma
métrica de quem sai e de quem fica.
Quando temos a nossa arquitetura
pronta, temos condições de lidar com as ideias e com o contexto da vida. E isso
somente com o tempo. Não há como comprarmos atalhos para atingirmos esta
arquitetura.
Buscamos somente sermos atores de
protagonistas, e não atores de conquistas. Assim como fez este casal. Uma dança
simples, com passos pensados, com pisadas térreas e menos aéreas, porém vivos e,
acima de tudo, com vozes. Uma dança simples.
O idoso já aprendeu a se
decompor, fundamental para enxergar e para acessar caminhos menos dolorosos na
vida. Ele não se preocupa com coisas muito elaboradas porque já aprendeu que é
a vida quem sempre dá o arremate. Esta função é dela e não nossa. O que chegou
há pouco tempo aqui, ainda não dominou a arte do viver e do se decompor. Ainda
briga com a vida para disputar o lugar de fala. O lugar do arremate.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Mário Sérgio Cortella, filósofo, que diz:
“quando morre um idoso, é como se
incendiássemos uma biblioteca.”
Que esta biblioteca seja
respeitada e que possamos ter a humildade de aprender com ela. A biblioteca
guarda raridades e singularidades que busca alguma de internet será capaz de reproduzir. Portanto, há que se respeitá-la.
O respeito é um dos poucos caminhos possíveis, senão o único, para que um dia, quem sabe, tenhamos a condição de
montar a nossa biblioteca. Ou a nossa própria dança.