domingo, 30 de setembro de 2018

Ah, a velhice

Há assuntos que não se esgotam. E velhice é um deles. Um clássico da nossa cultura. E o que seria um clássico? É aquilo que nunca esgota o que precisa ser dito. Sempre há o que dizer. Sempre há reflexões a serem feitas sobre algo que nos incomoda.

Velhice, na nossa sociedade, é sinônimo de derrota. Um convite discreto da sociedade pedindo para você se retirar. Aposentamos as pessoas porque estão velhas. Não servem mais. Obviamente que não dizemos com esta franqueza. Mas é assim que pensamos, infelizmente. A palavra aposentadoria tem em sua matriz a palavra aposento que, antigamente e até hoje, é o lugar da casa destinado ao descanso, ao pousar, ao repousar. O “a” de aposentadoria significa junto de. Portanto, aposentar é, literalmente, deixar algo ou alguém aposentando, descansando junto de um cômodo da casa: o aposento. E com o passar do tempo, além do significado inicial, também ganhou reforços pejorativos de inatividade, exclusão, retirada de circulação, isolamento.

Uma passada na História sempre nos traz incômodos. A História guarda a nossa memória.

Os que ainda não chegaram lá, se auto intitulam sabedores do que é o melhor, e assim, estas pessoas são colocadas à margem. A vida segue, mas agora o bilhete delas é apenas como expectadoras, como visitantes abelhudos que, muitas vezes, não são bem-vindos.

Mas ainda bem que há pessoas, acredito, que não prestam muita atenção a estes conceitos criados por aqueles que nada sabem da vida.

vídeo tirado da internet

Há que diferenciarmos velho de idoso. Velho é aquilo que perdeu a vitalidade. Um sapato e uma roupa ficam velhos. É um estado daquilo que foi gasto e usado pelo tempo. Aquele que foi utilizado e visitado pelo tempo ficou velho. Nós também envelhecemos. As rugas surgem, algumas dores nos visitam e a limitação física nos dá sinais de que há tempos estamos aqui. Idoso é aquele que, apesar da velhice impressa na pele e na limitação física, a vitalidade permanece. A vida se sobrepõe e se impõe. Vivemos. Seguimos. Envelhecemos por causa do excesso da idade, mas a vitalidade e a dinâmica da vida se colocam acima disto, apesar das dificuldades que o excesso de idade nos apresenta.

Quando pensamos sobre isto, ficamos pequenos diante de tantos aposentos lotados com o nosso consentimento. A nossa pequenez se agiganta diante tanta ignorância. Afastamos aquele que poderia nos ensinar a ser maiores. Mas parece que gostamos deste lugar pequeno que ocupamos por causa da nossa falta de disposição para o crescimento.

É preciso revisitar conceitos, irmos além. Somos reféns de nós mesmos. A condição na qual vivemos cria impeditivos para nós próprios.

O avançado da idade nos incomoda pois dá trabalho pensar sobre. A velhice e a sua vitalidade nos trazem espelhos, mas que insistimos em cobri-los. Sofremos de certa alienação e douramos o nosso discurso para mostrarmos o que, na verdade, nos falta.

As catracas servem para evitar a saída ou para impedir a entrada? Uma esquizofrenia que não tem resposta. Não há como responder a esta pergunta. O nosso discurso de valorização do idoso existe por causa das leis que nos obrigam a isso ou por causa do nosso respeito sincero? Voltamos à esquizofrenia das catracas. Assunto complexo porque envolve toda a nossa estrutura de ser num mundo que insiste em nos vigiar, como diz a música.

Aquele casal do vídeo dança daquela forma não somente pela disposição e condição física. Mas sim por acreditar que o rendimento deles nunca poderá ser maior que a imagem que possuem de si. Como não se colocam na condição de velhos, no sentido de ausência de vida, seguem e continuam, apesar do coro lá fora dizer o contrário. Apesar de os esforços coletivos serem eficientes e persistentes para que eles sigam na fila em direção aos aposentos.

Não se trata de fazer de conta que a idade não nos alcançou, ou de fazer aquilo de que está acima de nossas possibilidades. Mas sim de continuar.

Um continuar com paradas mais frequentes, um continuar com cansaços mais evidentes, um continuar com um intervalo para engolir o remédio. Mas, acima de tudo, um continuar.

Quem segue, recobra os sentidos da própria trajetória. Dá a volta e segue na estrada há tempos percorrida. Um continuar permeado pela dignidade e pelo respeito às necessidades que se fazem no caminhar.

Uma dança com passos mais moderados: mas ainda assim é uma dança. Um casal que faz contornos mais comedidos: mas ainda assim é uma dança. Um seguir colocando tijolos na própria construção.

O avançar da idade exige recortes, revisitações e readaptações. Mas em momento algum este avançar de idade exige estagnação e aposentos. Aliás, não há, atrás das portas, um lugar pronto para pendurarmos as nossas chuteiras. Quem coloca um prego lá somos nós mesmos ou aqueles que acreditam ter este poder. São os doentes do caminho. Aqueles que buscam, o tempo todo, elevadores no caminho.

Seguir respeitando o cansaço de nossas pernas. Dançando uma música mais lenta. Pedindo para alguém falar mais alto. Trabalhando menos. Mas seguir. Seguir não é uma obrigação, mas um convite.

O jovem dança mais rápido. Isto é verdade. Mas é verdade também que ele conhece poucos ritmos, o que fará falta na hora de uma escolha. Ele mais facilmente cairá no vício de exigir respostas rápidas da vida. Mas ela ensina. De forma dura, mas ensina.

O idoso dança mais devagar. Isto é verdade. Mas ele conhece inúmeros ritmos que o possibilita fazer melhores e sábias escolhas. Dificilmente ele exigirá mais do que a vida poderá dar. Fez as pazes com ela. Brigar com a vida é ainda um ímpeto daquele que está aqui há pouco tempo.

O idoso costuma ser colocado de lado, geralmente nos cantos, nas pontas, nas celas disfarçadas de lar. O conhecimento que ele tem é visto como ultrapassado. Quando ele fala, outras vozes o calam. Nem a nossa pseudo educação conseguimos mostrar.

Para valorizar a idade, a velhice, o idoso, há que se compreender e aceitar a nossa condição de finitos. A finitude é uma condição do humano. Queremos ignorar a nossa própria condição.  Aposentamos as pessoas porque é uma das maneiras de tirarmos o relógio da nossa frente. Um idoso na nossa frente significa a certeza da passagem do tempo. Excluir a velhice da nossa realidade não a valorizando é uma das formas de não lidarmos com a nossa própria realidade.

Temos a crença na desvalorização do idoso, do avançar da idade. E a função da crença é se perpetuar. Por isso, temos uma sociedade de doentes que busca algo que jamais encontrará: o prazer da própria companhia. Aquele que caminha junto de si, independentemente da idade, mas respeitando as novas exigências, segue em paz consigo.

É preciso mudarmos as nossas referências para que possamos mudar o nosso comportamento.

A idade avança e com ela conquistamos dois valiosos passos que somente as pernas mais cansadas poderiam alcançar: a experiência e a autonomia. Apesar de o mundo dizer o contrário. Não há como alcançarmos estes dois patamares de excelência antes do avançar dos relógios. A juventude que nos perdoe.

O bom de ser jovem é que o relógio está a nosso favor. Mas que também avança. A juventude é um lugar de escuta da vida. Mas, antes de tudo, um lugar de cobranças do que há por fazer. O espelho ainda mostra o viço da pele, mas antes disto, mostra o que ainda não foi feito, o que é muito mais importante do que a luminosidade de qualquer pele. Para os lúcidos, a juventude é um lugar do fazer. Dos espaços vazios que precisam ser preenchidos com vozes e com ações. Atitudes e construções.

A beleza da idade é que, apesar de o relógio caminhar mais rápido, a lucidez de saber valorizar o sol da manhã e da tarde é vívida e presente. O avançar do tempo traz de presente a nossa presença no hoje. Não no ontem e nem no amanhã. O ontem nos construiu. O amanhã nos construirá. Mas o hoje é quem possui a caneta em mãos. A lucidez da idade nos faz desviar dos vícios a caminho das virtudes. Uma valorização do tempo nasce em nós. Deixamos de participar de brigas, de correr atrás delas. As lutas passam a ser seletivas.

Vivemos oportunidades de reavaliação de nós mesmos e, consequentemente, de conceitos. Nosso núcleo de existência é o inacabamento. Somos inconclusos.

O excesso de idade não deve ser uma métrica de quem sai e de quem fica.

Quando temos a nossa arquitetura pronta, temos condições de lidar com as ideias e com o contexto da vida. E isso somente com o tempo. Não há como comprarmos atalhos para atingirmos esta arquitetura.

Buscamos somente sermos atores de protagonistas, e não atores de conquistas. Assim como fez este casal. Uma dança simples, com passos pensados, com pisadas térreas e menos aéreas, porém vivos e, acima de tudo, com vozes. Uma dança simples.

O idoso já aprendeu a se decompor, fundamental para enxergar e para acessar caminhos menos dolorosos na vida. Ele não se preocupa com coisas muito elaboradas porque já aprendeu que é a vida quem sempre dá o arremate. Esta função é dela e não nossa. O que chegou há pouco tempo aqui, ainda não dominou a arte do viver e do se decompor. Ainda briga com a vida para disputar o lugar de fala. O lugar do arremate.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Mário Sérgio Cortella, filósofo, que diz:

“quando morre um idoso, é como se incendiássemos uma biblioteca.”

Que esta biblioteca seja respeitada e que possamos ter a humildade de aprender com ela. A biblioteca guarda raridades e singularidades que busca alguma de internet será capaz de reproduzir. Portanto, há que se respeitá-la. O respeito é um dos poucos caminhos possíveis, senão o único, para que um dia, quem sabe, tenhamos a condição de montar a nossa biblioteca. Ou a nossa própria dança.

sábado, 8 de setembro de 2018

O tempo da construção

A construção é o único caminho possível para que a nossa obra aconteça e se torne real. Se não for por ele, a nossa obra será uma farsa.

Num tempo em que tudo se fotografa e pouco se vive, a nossa obra tem se tornado sinônimo desta foto, deste algo pronto, estático, acabado, entregue. Queremos chegar no final, no momento de bater a foto, seja com o celular ou com a velha e boa máquina. O meio não importa. O que importa, mesmo, é chegar após a mesa posta, após a construção concluída. O bom mesmo, é chegar no momento da foto. Assim, garantimos a falsa crença para o outro e para nós de que participamos daquele processo. Fizemos o trabalho e concluímos o trajeto.

Queremos chegar no final. Mas por que o início, a construção, tanto nos incomoda? Por que queremos uma obra desde que não tenhamos de construí-la? São perguntas cujas respostas transitam em cada um de nós. São respostas que pertencem a nós, e a mais ninguém.

Não se trata de saudosismo, tampouco apologia ao passado. Apenas uma leve desconfiança que me faz acreditar que num passado, as pessoas valorizavam mais o tempo da construção. Havia um sentido claro do porquê estou numa construção, do porquê consegui concluir uma obra. A minha percepção é de que havia mais respeito ao tempo do bastidor, assim como ao tempo da conquista e do desfrutar da obra após um período árduo de construção.

Quando se valoriza o tempo da construção, a obra se torna mais bela para os olhos de quem a vê. Contemplar, verdadeiramente, uma obra, apenas sabe aquele que levou o tempo necessário para construí-la, sem apressar a vida. Sem engolir passos e etapas.

Antes, com menos facilidades que hoje, o nosso critério de valorização das coisas, da vida, em si, era outro. A ausência de tantas facilidades nos dava apenas uma escolha: a construção. Hoje, com tantas facilidades, o nosso critério adoeceu: misturamos diversos conceitos, colocamos tantas coisas juntas, que, infelizmente, perdemos a noção do básico, do que precisa ser colocado na frente, do que vem antes, obrigatoriamente. Perdemos a noção da relevância da construção e de que, sem ela, não há obra. A construção antecede a obra. Qualquer caminho alternativo, é um pedido para se perder no trajeto. Hoje, com diversas possibilidades, ficamos confusos porque não sabemos escolher. Não aprendemos isso. Ou se nos ensinaram, talvez tenhamos saído mais cedo naquela aula.

Tantas escolhas que esquecemos como se escolhe. Perdemos a mão e o tom desafinou numa orquestra que não permite ensaios, como disse Chaplin. Vivemos tempos viciantes de novidades que nos enchem de necessidades desnecessárias. Vivemos tempos de crença no fast, no discurso de elevador, nos 120 caracteres, que, a propósito, é tudo o que este texto não tem. A capacidade de síntese é essencial. No entanto, o tempo da construção nos pede um pouco além da síntese. Há que saber quando estar de um lado, quando estar do outro. Queremos desequilibrar esta balança e ficarmos do mesmo lado: o lado da obra pronta. O lado da construção costuma ficar mais vazio e frequentado por, ainda, poucos lúcidos.

Por que queremos chegar no final? Por que queremos entrar em cena quando tudo já estiver montado? Por que queremos somente fazer os filmes importantes e de sucesso?

A construção é o início do que pode ser. É o começo de uma trajetória. A obra é a entrega do que pôde ser. É o final. A construção sem obra é uma realidade, no mínimo, de uma experiência vivida. Uma obra sozinha inexiste. Uma construção sem obras, apesar de triste, é um exercício. Uma obra sozinha é fruto de mentes alienadas.

A construção existe por si só. A obra não. Querer inverter estes papéis é se apropriar de méritos que ainda não fizemos por merecê-los.

imagem tirada da internet

Num tempo da valorização do pronto, sujar os nossos sapatos com a poeira da nossa construção soa meio fora de moda. Entrar pelas portas dos fundos, porque a principal ainda não ficou pronta, é desconfortável para nós. “Esta será a de serviços”, dizemos. E, certamente, por lá, passarão apenas os empregados: aqueles que são pagos para nos servirem.

Num tempo da valorização do rápido e do agressivo, perdemos a nossa capacidade de ouvir a vida, e de perceber que ela demarca, com sabedoria, os lugares para a rapidez e a agressividade. Ao contrário de nós, que permitimos assentos livres para eles.

O tempo da construção é sempre aquele que escondemos dos outros. É aquele tempo das quedas, das retomadas, dos ajustes, dos cálculos, dos abandonos de rotas erradas. É um tempo de relíquias descobertas. É o tempo do descortinar. Aquele tempo para soltarmos os tubarões que ficaram presos no nosso anzol, como dizia o escritor.

Um tempo de escuta, mas também de ação. Um tempo de poeira, de bagunça, de desordem, de caos. Mas se nos lembrarmos de que somos fruto deste mesmo caos, bagunça e desordem, talvez a construção comece a fazer sentido para nós e a se tornar familiar. Nada como algo conhecido para que o medo ceda lugar para a ação.

Lendo um artigo outro dia, um profissional de 26 anos diz, sem o mínimo pudor (ainda se usa esta palavra?!), que está ansioso por avançar rapidamente na carreira para chegar à Liderança. “Quero ter uma equipe”, disse ele.

Lendo isso, me lembrei dos tubarões presos em cada anzol que nos pertence. E como vão cheios. Este rapaz deve ter muitos deles presos. Não há como querer ter uma equipe, sem antes ser uma equipe, saber o que seja uma equipe. Esta nossa mania de inverter a posição dos verbos ainda vai nos levar de volta para o lugar de onde nem saímos. Novamente, o tempo da construção é um tempo vazio de integrantes. Aonde estão quase todos? Do lado de lá, da obra pronta, do momento do enter, do momento da foto, do momento do like.

Numa sociedade aonde o verbo ter vem antes do ser, há muito trabalho. Muitos tubarões a serem soltos. Mas como estão lá há tempos, talvez tenham já se acostumado aos nossos anzóis. E, de verdade, creio que teremos trabalho para soltá-los. É preciso lembrar que os animais também têm voz. E se resolverem não soltar os anzóis que os prendem, faremos companhia uns aos outros. Como estamos acostumados a isso, não será difícil a caminhada.

O tempo da construção é o primeiro grande presente da vida. Mas como somos ingratos, o presente está lá, ainda por abrir. Aqueles que tiveram a coragem de abri-lo, já vão na nossa frente, e se nos demorarmos, os perderemos de vista. Como os anzóis destas pessoas vão livres, a caminhada deles se torna mais rápida. Um rápido eficiente, e não um rápido para caber num discurso de elevador que servirá para nos vendermos a desconhecidos. E não num discurso vazio de 120 caracteres, apenas para dizermos “presente”, nas redes sociais. Não um fast para atrapalhar toda a nossa digestão, e pior, nem saber o que comemos.

Fazemos um papel, mas já queremos ser a Fernanda Montenegro. Fazemos uma viagem de uma semana, e dizemos que conhecemos o local. Sabemos a manchete, e nos dizemos atualizados. Fazemos um curso de três meses, e nos dizemos fluente no inglês. Passamos alguns parcos meses num determinado cargo, e dizemos que somos generalistas.

Até ontem, éramos ilustres e velhos desconhecidos uns dos outros. Hoje, por causa das redes sociais, nos achamos o Woody Allen porque temos um canal no YouTube. O primeiro computador criado data da década de 40 do século passado, e nos valorizamos por saber usá-lo? É isso mesmo?! Chegamos aqui com tudo pronto. Acredito que saber usar seria o mínimo. Somos fluentes nas redes sociais. Quem, de verdade, deveria se vangloriar: o criador ou o simples usuário? Parece-me que ainda não sabemos esta resposta. Por isso, os nossos tubarões insistem em não desistirem da gente.

Por que nos orgulharmos tanto que os nossos filhos, ao se aproximarem da televisão, fazem menção ao touch? Eles nasceram nesta tecnologia. É natural agirem desta forma. Se nos orgulhamos por sabermos usar, o que dirá, então, dos criadores? O mais irônico é que eles vão bem a nossa frente, não os ouvimos. O prazer deles está na construção, no servir. Por isso a estrada deles é mais transparente e linear, e com anzóis livres.

Somos direcionados para modelos pré-estabelecidos. Estamos distantes de algumas discussões. E penso que esta é uma delas. O tempo da construção é o tempo necessário que precisaríamos viver para percebermos o valor dele. É ele quem nos recoloca nos trilhos, nos reconduz à lucidez perdida quando nos achamos o Steve Jobs da tecnologia ou algum outro mestre da nossa História, que há muitos. O tempo da construção nos dá o sentido real do caminho a ser seguido. Ele apara as nossas arestas, nos retira dos excessos, nos dá medidas que perdemos quando ficamos só do lado da obra pronta. Mostra-nos o nosso tamanho.

Há coisas tão entranhadas na gente, que nem percebemos. O caminho da obra pronta e da foto é gratificante, mas apenas para aqueles que construíram, verdadeiramente, aquele caminho, cujos anzóis vão vazios e livres. E o melhor: estes mesmos anzóis não servem mais para prenderem tubarões. Eles possuem, agora, outro propósito, outra utilidade.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase do Budismo que diz:

“Deus nem sempre está dentro do Templo.”

Desconfio que ele está na construção, por isso não o encontramos com facilidade, no Templo. Mas como insistimos em bater uma foto apenas do Templo, como queremos estar sempre lá, porque esta é a obra pronta, creio que este nosso encontro com Deus será difícil. Para encontrá-lo, somente sujando nossas botas, nossas roupas e nos sujeitando a desarrumar os nossos penteados ao passarmos por debaixo de fios e tapumes. Neste momento, e sem pressa de sairmos desta construção, talvez a gente o encontre. E a partir desta hora, o Templo fará todo o sentido para nós. Enxergaremos o real valor dele e ganharemos talvez o segundo grande presente da vida: o merecimento, real, de estarmos lá.

domingo, 2 de setembro de 2018

O que dizem as nossas arestas

O título deste texto poderia conter um ponto de interrogação, e assim, ele se tornaria uma pergunta. Mas colocar um ponto de interrogação significa que um questionamento nos está sendo feito. Evidencia que a vida nos colocou num lugar de devedor de uma resposta. Ou a gente mesmo se colocou neste lugar. Tanto faz. O fato é que o ponto de interrogação descortina uma pendência, algo a ser feito: uma resposta precisa ser dada.

Perguntas são sempre imprescindíveis e necessárias para compreendermos a vida. Mas penso que a reflexão antecede a pergunta. E por vir antes, se torna muito mais incômoda do que qualquer pergunta. Reflexões exigem ausência de pontos de interrogação. Sem perguntas para que o convite à reflexão possa ser visto.

Uma pergunta, por mais constrangedora e invasiva que seja, é sempre um lugar que nos permite questões, dúvidas, defesas e provarmos, se for o caso, que o que dizem não é verdadeiro. O lugar da pergunta nos permite um certo tráfego, um caminhar, um construir. De repente, estamos sendo questionados sobre algo cujo conteúdo desconhecemos ou não nos pertence. Algo sobre o qual não seja verdadeiro. Quem disse que temos arestas, por exemplo? O lugar da pergunta é o trajeto da montagem, do empilhamento de materiais da nossa própria obra. Podemos mudar coisas de lugar, errar, falhar, esquecer, perguntar. E até descobrir que temos arestas, por que não?

O tempo da interrogação é um tempo sem pressa. Temos direito a ele. É o lugar que ocupamos quando aceitamos a nossa condição de aprendizes. Desconfio que deveríamos passar mais tempo neste lugar, mas outros lugares reclamam, também, a nossa presença.

E um destes lugares é o da reflexão. Um lugar atemporal, necessário e um dos grandes presentes da vida, mas que insistimos em deixá-lo fechado porque o embrulho está muito bonito para ser desfeito.

Apenas chegamos a uma pergunta porque fizemos uma reflexão anterior. Antes de qualquer questionamento que tenhamos feito na vida, certamente uma reflexão, mesmo sem ter sido percebida, foi feita por nós. Não há como questionar algo sem um pensar inicial.

A reflexão sobre é o condutor para a pergunta. Nossas perguntas são o resultado das nossas reflexões. Só caminhamos porque estamos mergulhados neste ciclo: reflexões e perguntas.

Este ciclo se alimenta da nossa vivência, das nossas experiências, do que escolhemos e deixamos de escolher e, acima de tudo, da dinâmica de vida que optamos e criamos.

Reflexões que nos induzem a perguntas. Perguntas que nos induzem à mudança. Mudanças que nos induzem ao crescimento. Crescimento que nos induzem à retomada do nosso lugar.

Um viver de muito trabalho. Um trabalho imenso para se viver. Um caminho de asfalto refeito, de árvores plantadas e com pássaros nos galhos. Um céu que brilha sem nuvens, grama fofa e úmida, um cheiro bom de mato. Um caminho de buracos, de rotas tortuosas, visibilidade ruim e de sinalização precária. Um caminhar de exigências leves e pesadas, mas que as ferramentas todas nos foram dadas. Um viver que nos exige coragem para ouvir as nossas perguntas e as que nos são feitas pela vida, esta mesma vida dos pássaros que cantam e a das rotas tortuosas.

Até agora falei sobre a reflexão como uma ferramenta de indução à pergunta. Este é um dos aspectos da reflexão: nos provocar e nos incomodar a cerca de nossas certezas. Há, no entanto, um outro aspecto das reflexões que é quando elas se bastam. Ou seja, não nos encaminham para perguntas. Elas são tão completas e exaustivamente respondidas pela vida, que não há a necessidade de perguntas. E se mesmo assim as fazemos, será porque queremos insistir na desistência de crescermos e de que, com isso, não assumirmos as responsabilidades que nos cabem.

Estas reflexões, por serem desprovidas de pontos de interrogação, escancaram, para nós, certezas e afirmativas que, por meio de esforços cansativos e precários, tentamos esconder. Elas nos mostram caminhos claros e extremamente bem sinalizados. Mas que teimamos fazer de conta que não percebemos. Estas reflexões não necessitam de perguntas. São óbvias. Talvez por isso elas sejam colocadas de lado. Como não há espaço para perguntas, o que fazer com elas? Porém, a insistência na não observância do óbvio nos traz dores que nos conduzem aos vícios. Não apenas o vício material, mas o moral, que é o pior de todos.

Quando estamos viciados, nos desviamos do objetivo que é o da reflexão, que é o de ouvir o que a vida está nos dizendo. E viciados, nos deformamos. Saímos da nossa forma, daquilo que poderíamos ser se não fosse a nossa insistência no contrário, no ausente, na surdez. E aí deformados, sentiremos dores que nos farão querer sair daquele estado que a gente mesmo se colocou. Sem vitimização. Sem culpar o outro.

O objetivo das dores é, exclusivamente, o da nossa reabilitação. Mas se conseguíssemos aceitar as reflexões que se bastam, fazer as reflexões que nos levam às perguntas e caminhar com atenção pela estrada, seja ela com pedras ou não, talvez as dores desistissem da gente, ou se transformariam em companheiras mais prazerosas. Mas é claro que a gente chega lá. O amanhã é um lugar que pode ser hoje. Para isso, é preciso o nosso arregaçar de mangas. De mangas erguidas, a caminhada fica mais fácil.

O caminho percorrido por nós é sempre uma escolha que passa por nós. Há os dedos dos outros. Mas a mão que pesa mais sobre o caminho é sempre a nossa. Quando aceitarmos isso, talvez nossa jornada se torne mais leve e com tempo para observarmos os pássaros que vão nas árvores. Estão todos lá. Eles nos enxergam. Mas poucos de nós os veem.

Nas reflexões que nos induzem às perguntas, um momento de construção, de não saber. Um espaço de criação de dúvidas, de remodelagens. Nas reflexões que se bastam, o não saber perde força. Aqui, as reflexões estão seguras de si e qualquer pergunta seria um excesso. E lidar com excessos é sempre perigoso.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pequeno diálogo entre Michelangelo e uma pessoa, do livro Maktub, de Paulo Coelho:

- Michelangelo, como você faz para criar obras tão magníficas?

- É muito simples, respondeu Michelangelo. Quando olho um bloco de mármore, vejo a escultura pronta dentro. Tudo o que tenho de fazer é retirar as arestas.

Genialidade à parte do pintor italiano, que tantas obras maravilhosas realizou, enxergar a obra pronta dentro de um bloco de mármore é tarefa para poucos. Infelizmente, para a maioria de nós, a obra pronta está invisível devido às arestas que tornamos cada vez mais visíveis.

Nossas arestas são uma simbologia das reflexões que se bastam. Nossas arestas não deixam dúvidas, não nos induzem a perguntas. Elas existem e nos preenchem. Mas que nossos olhos, muitas vezes, medrosos, viciados e teimosos não percebem. Se elas nos induzissem a perguntas seria mais fácil, porque das perguntas não podemos fugir. São visíveis e percebidas com facilidade. No entanto, as reflexões que se bastam são irônicas, autossuficientes, independentes. Não nos fazem perguntas. Pelo contrário: nos trazem espelhos ao invés de perguntas.

A autossuficiência das nossas arestas nos mostra que há muito o que fazer, há muito o que descortinar em nós. Nossas demandas são muitas. É preciso foco para darmos conta de tudo. As arestas nos dão as informações que precisamos para nos tornarmos mais. Sem estas informações, perderíamos as nossas capacidades de discernimento. É preciso transparência para lidarmos com as nossas arestas e humildade para reconhecê-las, assim como fez Michelangelo. Somente um gênio, como ele, para reconhecer que há uma obra pronta, no caso, a gente mesmo, mas que, antes disto, muito trabalho há que ser feito, como o principal que é aparar todas as arestas.

Arestas: uma reflexão que se basta. Não necessita de explicações. Não faz perguntas. Mas apenas a sua simples existência a torna tão complexa. Se “conseguirmos desbastar as nossas paredes brutas para que uma grande obra seja libertada”, como disse Michelangelo, teremos conseguido ser a melhor construção de nós mesmos. E isso apenas aparando as nossas arestas. Sem perguntas. Elas não serão necessárias aqui.

Arestas: uma reflexão que se basta. Quando decidirmos desbastá-las, nos redescobriremos na nossa própria companhia. Agora uma companhia mais leve, com tempo para apreciarmos os pássaros nas árvores, além da bela obra que teremos construído: nós mesmos.