quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Os crocodilos incompreendidos

imagem tirada da internet
Diz a história que um milionário promoveu uma festa em uma de suas mansões. Num determinado momento, ele pediu para baixar o som para poder falar com os convidados. Ao lado da piscina, aonde criava crocodilos, ele disse:
- Quem pular na piscina e conseguir atravessá-la até o outro lado ganhará todos os meus carros. Alguém se habilita?
Espantados, os convidados ficaram em silêncio. E o milionário insistiu:
- Quem pular na piscina e conseguir atravessá-la até o outro lado ganhará todos os meus carros e os meus aviões. Alguém se habilita?
O silêncio foi desconcertante.
Mais uma vez, então, o milionário disse:
- Quem pular na piscina e conseguir atravessá-la até o outro lado ganhará todos os meus carros, os meus aviões e as minhas mansões.
Foi neste momento que alguém saltou na piscina. A cena era impressionante. Uma intensa luta. O rapaz que saltou na piscina se defendia como podia. Segurava a boca dos crocodilos com pés e mãos. Tentava torcer o rabo dos animais. Muita violência e emoção. Após alguns minutos de terror e de pânico, o corajoso homem, cheio de feridas, saiu da piscina. Vivo.
O milionário se aproximou dele, o parabenizou e perguntou:
- Aonde você deseja que os meus carros sejam entregues?
- Obrigado, mas não quero os seus carros, respondeu o rapaz.
Surpreso, o milionário perguntou:
- Então você aceita os meus aviões? Aonde posso entregá-los?
- Obrigado, mas também não quero os seus aviões.
Estranhando a reação do homem, o milionário fez mais uma pergunta:
- E as minhas mansões? Agora elas pertencem a você!
- Eu tenho uma bela casa, não preciso das suas, respondeu o rapaz.
Impressionado, o milionário perguntou:
- Mas se você não quer nada do que ofereci, o que quer então?
- Apenas encontrar o imbecil que me empurrou para dentro da piscina!
Humor à parte, ninguém, em sã consciência, se atiraria, literalmente, numa piscina com crocodilos. A aparência amiga que a imagem deste texto sugere está presente só nos desenhos. Na vida, queremos ficar longe deles, mas nem sempre é possível.
Sempre escrevo que são várias leituras que podem ser feitas a partir de um texto. E com este não poderia ser diferente. Toda e qualquer leitura que fazemos sempre trará a verdade de cada um.
Lendo esta história, me lembrei das piscinas com crocodilos pelas quais já passei, e com as quais fui convidada a lidar e a mergulhar. O convite, muitas vezes, vinha mascarado de oportunidade na fala de um mau gestor, no erro por escolhas mal pensadas, no comportamento dos hipócritas, no discurso pronto e hostil e aquele comprado por pessoas que não faziam da ética, a sua primeira opção de vida. Piscinas não me faltaram. Algumas fundas, que me ensinaram a nadar, e outras rasas que, apesar de eu não ter o problema da profundidade, outros crocodilos eram colocados lá a todo momento. O convite vinha por todos os lados.
Nunca entramos, por querer, em piscinas com crocodilos. No máximo, sabemos que estamos entrando num lugar com animais ferozes, mas o nosso otimismo natural sempre nos faz crer que o bicho “não é tão feio assim como pintam”. E aí, esperançosos, colocamos parte dos nossos pés na água, e quando nos damos conta, o crocodilo já está atrás de nós. Na maioria das vezes, o que ocorre, exatamente como na história, somos convidados a dar um mergulho numa piscina com integrantes bem acessíveis e generosos.
Entrar em piscinas com crocodilos não depende apenas de nós. Permanecer nelas, sim.
Os crocodilos, apesar de sua aparência repugnante e do perigo que representam, nos fazem um serviço que anos de estudos não seriam suficientes: eles nos fazem, como na história, lutar como guerreiros, desejar a nossa sobrevivência, descobrir o nosso lado estrategista, planejar, confiar, desenvolver o foco e a atenção, ter um objetivo e persegui-lo.
Com um crocodilo atrás da gente, o tempo e a vida são mais valorizados.
Eles nos elevam a um patamar de excelência que levaríamos anos para descobrir e para colocar em prática.
Na história, mesmo à força, aquele homem descobriu que “o outro lado da piscina” é para todos, inclusive para ele. Que chegar “do lado de lá” dependia, entre outras coisas, dele.
Metáforas e proporções à parte, estarmos mergulhados numa piscina com crocodilos é sinônimo de testar nossas forças, de não desistir e de, acima de tudo, rever planos e objetivos. Os crocodilos são excelentes anfitriões. Eles não nos dão muito tempo para firulas. Forçam-nos a nos enxergar dentro da piscina e saber quem somos. Estar lá é um convite para saber se o rumo tomado está certo.
Os crocodilos sempre indicam caminhos. É preciso saber reconhecê-los e trilhá-los.
Eles sempre foram presentes em nossas vidas. Como são quietos e lentos não percebemos a sua presença. Mas eles estão lá.
Com ou sem o nosso consentimento, eles têm vida própria e sempre nos visitam ao longo de nossas vidas, e de formas variadas. Eles chegam, se acomodam e ainda nos pedem um café, porque não têm hora para irem. Mas quando eles se vão, nos agigantamos. Olhamos para trás, para a piscina na qual estávamos mergulhados e, de forma irônica, agradecemos aos crocodilos pela visita, até então incompreendidos por nós. Reconhecemo-nos vivos e munidos de ferramentas até então desconhecidas por nós. Ferramentas nos dadas por eles.
Ferramentas que descobrimos ao longo de nossa jornada até o outro lado da piscina. Ferramentas que descobrimos enquanto lutávamos com os crocodilos.
Eles existem para despertar a força que há em nós, cuja capacidade não tivemos para fazê-la. Mas eles tiveram e fizeram o trabalho por nós. Os crocodilos são ágeis e atentos.
Dentro de uma piscina com crocodilos, o “não posso” não existe, mas sim o “como”. Somente isto nos fará sobreviver a eles. O como abre caminhos para o outro lado da piscina; o não posso nos faz ser engolidos.
Enquanto nadamos até o outro lado, o crocodilo vai nos obrigando a descortinar nossos saberes. É uma questão de sobrevivência. Não temos saídas e opções. E a medida que avançamos e chegamos do outro lado, o crocodilo vai se despedindo de nós. Vencer é uma questão de escolha e de criar possibilidades.
Sem eles, poderíamos ter ficado pelo caminho. Muitos de nós, por não terem tido crocodilos em suas vidas, viveram às margens da paisagem vista da janela. Mas os que tiveram a grande sorte de terem sido jogados dentro de piscinas com crocodilos, hoje ajudam a pintar a paisagem, e não apenas a contemplam.
Portanto, gratidão aos crocodilos do caminho, antes que os convites para novos mergulhos cheguem a nós.
Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Horácio, Filósofo e Poeta da Roma Antiga, que diz:
“A adversidade desperta em nós capacidades que, em circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecidas. ”
Bendito sejam os crocodilos do caminho.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Os elefantes invisíveis

Durante minha trajetória profissional, trabalhei na equipe de um grande Líder com quem aprendi muito. Quando acontecia algo absurdo que, na visão dele, representava uma grande perda de foco e de tempo, ele dizia: “prestamos tanta atenção às formigas, que não percebemos a passagem dos elefantes. ”

Fico imaginando como não perceber a passagem de elefantes..., mas o fato é que eles passam, estão passando e já passaram. E a gente nem percebeu, realmente.

Obviamente que dar atenção às formigas é fundamental. Elas também fazem a diferença. E apesar de seu pequeno tamanho, suas obras são imensas. Mas naquele momento, ele chamava a atenção para o fato de que as formigas estavam bem cuidadas e encaminhadas, mas os elefantes não. As formigas estavam à mostra. Mas os elefantes não. As formigas se mostravam e faziam questão de dizer que estavam passando. Mas os elefantes não.

Formigas e elefantes: dois lados que dão conta das nossas questões e nos chamam a refletir. Mas quem está com boa vontade e disposição para esta conversa?

Ver e perceber as formigas é muito mais fácil. Organizadas, perfeccionistas e previsíveis, no bom sentido. Então, como não perceber que elas estão lá?

As formigas não se escondem. Mostram-se e o caminho delas é conhecido.

No entanto, os elefantes, mudam suas rotas ao primeiro sinal de perigo. São fortes. Atacam e constroem caminhos alternativos para despistarem os inimigos. Vivem em localidades de difícil acesso e dificultam, ao máximo, a proximidade com o homem.

Os elefantes não se mostram. Escondem-se e isolam-se. O caminho deles não é conhecido.

Por tudo isto é que aquele Líder, de verdade, com quem trabalhei, dizia isto com frequência.

Ter atenção para perceber o que realmente importa é para poucos. Perceber formigas é essencial. Mas perceber elefantes é imprescindível. Mas isto é para poucos. Apenas para aqueles cujo olhar se despojou de percepções inúteis e desnecessárias, livres do preconceito e das vaidades. E este olhar é para poucos.

A história abaixo, aparentemente inofensiva e divertida, escrita pelo cronista Sérgio Marcus Rangel Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta, traduz o que trago neste texto. A história é sobre a Velha Contrabandista...

imagem tirada da internet

Havia uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira, montada na lambreta, e carregava um saco atrás. Todos da Alfândega, experientes, começaram a desconfiar dela.

Um dia, quando ela vinha em sua lambreta, e carregando o saco atrás, o fiscal pediu para ela parar e perguntou:

- Escuta, aqui, vovozinha. A senhora passa aqui todos os dias, com esse saco atrás. O que a senhora carrega dentro dele?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que ainda restavam e mais outros que adquirira no odontólogo, e respondeu:

- Carrego areia!

O fiscal sorriu e não acreditou nela. Teve a certeza de que ela não carregava areia alguma naquele saco, e mandou que ela descesse da lambreta para examiná-lo. O fiscal, então, esvaziou o saco e dentro, realmente, só havia areia. Envergonhado, ordenou à velhinha que seguisse. E assim ela foi embora.

Mas o fiscal, mesmo assim, continuou desconfiado. Pensou que ela estivesse passando num dia com areia e no outro com muambas, dentro daquele saco. No dia seguinte, quando ela passou em sua lambreta com o saco atrás, o fiscal pediu para ela parar novamente. Perguntou o que ela levava no saco. E, de novo, ela respondeu que era areia. O fiscal examinou e confirmou. Durante um mês o fiscal parou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Aí o fiscal se chateou e disse:

- Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega há 40 anos. Reconheço de longe esta coisa de contrabando. Ninguém me convence de que a senhora não seja contrabandista.

- Mas no saco só tem areia, insistiu.

Quando ela ameaçou seguir com a sua lambreta, o fiscal propôs:

- Eu prometo que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai ter que me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?

- O senhor promete que não "espaia"?

- Juro, respondeu o fiscal.

- Meu contrabando é a lambreta...

Pois é, quantas lambretas não deixamos passar por estarmos tão obstinados em descobrirmos o que havia no saco.

Sabermos onde estão as formigas e o que há no saco é importante. Faz parte do processo. Mas enquanto estivermos destinando o nosso olhar apenas para isto, nossos elefantes invisíveis passarão, montados em lambretas, sem que percebamos a sua passagem. No máximo, acenaremos para eles, enquanto passarem por nós, como ilustres desconhecidos, sem sabermos o porquê os cumprimentamos e sem sabermos quem eles são...