“Se queres ser universal,
começa por pintar a tua aldeia.”
Este pensamento do escritor russo
Tolstói, um dos maiores da literatura mundial, é um clássico. Atemporal.
E por que seria um clássico?
O escritor Ítalo Calvino diz que
“um clássico é um clássico porque ainda não terminou de dizer tudo o que
precisa dizer”. São obras inacabadas, inconclusas, no bom sentido. O que está
por ser dito, pelos clássicos, é um constante diálogo entre nós e a vida, entre
a vida e nós. Há sempre o que dizer, porque sempre haverá vazios e preenchidos
a serem questionados, compreendidos e conhecidos. Vazios que insistem em nos
preencher e preenchidos que insistem em serem ilustres moradores desconhecidos.
Clássicos permanentes que sempre nos trarão perguntas e sempre nos lembrarão do
que está por fazer.
Clássicos se impõem pelo respeito.
Eles nos silenciam porque ouvi-los se faz necessário. Tolstói, portanto,
nos trouxe um destes clássicos, numa reflexão preocupada em nos relembrar a
relevância do pensar. Quando pensamos, damos volume a nós, tamanho e importância.
“Se queres ser universal,
começa por pintar a tua aldeia” traz inúmeras reflexões e aprendizados.
Para cada um de nós, um eco diferente deste pensamento, uma morada distinta, em
nós. Reflexões inúmeras, variadas, diferentes. Todas certas. Todas válidas.
Tolstói: imagem tirada da internet
Para mim, destaco o autoconhecimento
como eco que o pensamento de Tolstói fez em mim. Sem o autoconhecimento,
acredito que as nossas aldeias serão, sempre, paisagens distantes da gente, com
tintas descascadas, arranhões nas paredes, vidraças quebradas, canos
enferrujados, ilustres desconhecidas. Sem autoconhecimento, as nossas aldeias
serão sempre um por fazer. Um lugar escondido, mato alto, cerca destruída
e o desprezo como anfitrião.
Autoconhecimento é uma ferramenta
do viver. É imprescindível termos um viver, um plano de riscado, um tracejado. Viver
é um caminhar com passos, estratégia, vontade firme, espada afiada na medida e
desprendimento para saber retirar-se. Viver é esta busca pela universalidade
que representa não recusar o mesmo viver.
Conhecer-se é custoso, cansativo
e, por vezes, exaustivo. Mas como viver sem conhecer-se? Como saber se a nossa
aldeia precisa ser pintada, sem autoconhecimento? Não há receitas. Não há fórmulas.
Mas estratégia e vontade firmes, coisas que não podem ser desgastadas pela
continuidade.
A universalidade não é um lugar,
mas um estado. É preciso maturidade para alcançá-lo. A aldeia, antes de ser um
estado, é um lugar. É preciso coragem e maturidade para aceitar que se vive nela,
e disposição para abandonar as derrotas conquistadas às custas da nossa precisa
conivência. Para começar a pintar a nossa aldeia, é preciso se achar nela e,
principalmente, reconhecê-la e não se envergonhar. Debruçar-nos sobre as nossas
aldeias nos dará o tom de por onde começarmos. Mas não teremos dúvidas: pela
pintura.
Há muito trabalho a ser feito. No
entanto, estamos sempre olhando para lugares que ainda não chegaram, e falando
sobre um tempo que, se não cuidarmos, não chegará. A universalidade está distante
de nós, assim como estamos distantes das nossas aldeias.
Queremos ser universais. Queremos
ser pintores de horizontes. As nossas escadas começam no degrau máximo. Os degraus
menores não são para nós. Nossas aldeias choram a nossa ausência. Mas não ouvimos
estes choros porque as nossas malas estão prontas para o exterior.
Temos muitas sobreposições. Interferimos
e sofremos interferências o tempo todo, o que ofusca as nossas vistas. Somos frágeis.
As nossas aldeias choram mais uma vez. E a cada lágrima, descascam mais. É preciso
nos visitar e pintar as nossas aldeias. Apenas exercitando a limpeza e a
pintura das paredes, o obscuro, em nós, se mostra. Apenas pintando a nossa
aldeia saberemos aonde moramos, quem são os nossos vizinhos, qual é a natureza
do nosso bairro e, principalmente, a qualidade da tinta que vai nas paredes. Passar
tempo conosco. Transformar a nossa má ociosidade em diálogo conosco e com a
nossa aldeia. Questionar a nós.
Evitamos o diálogo porque não
assumimos o nosso não saber. Fechamos a porta da nossa aldeia para que ninguém
a veja desordenada. Aquele descascado é só um detalhe.
À medida que nos questionamos,
vamos dialogando com a nossa ignorância. Não uma ignorância pejorativa, mas uma
ignorância como única saída que nos leva ao saber. Somente aquele que
desconhece e que assume o próprio desconhecimento pode conhecer. A ignorância é
alavanca. Somente conhecemos, sabemos, avançamos porque assumimos o não saber,
o não conhecer. Não há como sermos universais sem passarmos pela nossa aldeia,
pelo desconhecido, pelo pequeno, por nós. Não há como sermos universais se a nossa
aldeia nos envergonha e, por conta disto, evitamos conhecê-la e estamos sempre
de malas prontas.
A universalidade somente
existe por causa da particularidade da aldeia. Universal é a soma dos pequenos
particulares. A cada aldeia conhecida e pintada, um universo povoado de belas
cores. A minha aldeia é a minha conversa comigo. A minha universalidade é a
minha conversa com o mundo. Somente posso conversar com o mundo quando tiver
aprendido a conversar comigo. Caso contrário, o eco da minha voz irá se sobrepor
a ela, e não conseguirei ser ouvida. Minha voz será um barulho perdido.
Voltando para a questão do clássico,
não é à toa que Tolstói é uma referência na literatura mundial: suas
falas são atemporais. Ele diz coisas que ainda farão, por muito tempo, morada
em nós. Tolstói ainda tem muito a nos dizer.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento incômodo de Oscar Wilde, outra referência
da literatura mundial, que diz:
“viver é a coisa mais rara do
mundo; a maioria das pessoas, apenas, existe.”
Aquele que vive já fez as pazes
com a necessidade do autoconhecimento, e passou, há tempos, na loja de tintas. A
aldeia dele é destaque e as paredes brilham. O raso, para ele, deixou de ser um
lugar sem base, e as narrativas também deixaram de ser mancas.
Aquele que vive, o homem do
Oscar Wilde, que não apenas existe, acaba de trancar a porta da própria aldeia.
O que terá acontecido? Sim, agora ele a tranca. Não um trancar daquele homem
que apenas existe, que se envergonha da própria aldeia, que a desconhece e faz
de conta que ela não existe. Mas um trancar de um homem que vive e que conquistou
o lugar de universal. E, por conta deste novo estado de universalidade, passou
a ser um pintor de horizontes, ofício aprendido ao tomar a iniciativa,
há tempos, de pintar a própria aldeia.