Para o texto de hoje, parto de
uma reflexão do filósofo, escritor e crítico alemão Friedrich Nietzsche,
que diz:
“...quando se olha muito tempo
para um abismo, o abismo também olha para você.”
Este pensamento, extraído da obra
Além do Bem e do Mal, é parte de um diálogo maior, mas fiz este recorte,
desta parte, para a escrita deste texto. É um convite para o nosso pensar, que
poderá ser aceito ou não. Caso aceito seja
este convite, por nós, a chance de permanecermos no mesmo lugar de
partida será remota. Avançaremos. E assim, encurtaremos caminhos e passos. Não
um encurtar para abreviar a vida; mas um encurtar para se viver com mais
lucidez, sentido e coerência. No entanto, caso não aceito seja este convite, por
nós, a chance de estagnação será próspera e nossas pernas estarão descansadas
devido ao pouco andar, e nossas mãos seguirão sem cicatrizes e marcas porque
não terão sido tão usadas.
A superficialidade ou a profundidade?
Nietzsche, assim como outros Filósofos essenciais, nos faz o convite à
profundidade, e não à superficialidade. Contudo, a profundidade traz marcas,
cicatrizes, dores e luz; a superficialidade traz mar calmo, nuvens distantes, conquistas
rápidas, mascaramento e alienação.
O essencial e permanente ou o
superficial e transitório? Marcas, cicatrizes e caminhos andados ou pele lisa,
pés descansados nos sapatos novos e perfumarias cheias de novidades
entristecidas?
imagem tirada da internet
Várias são as leituras que podemos fazer acerca do pensamento proposto por Nietzsche, um autor complexo que fala sobre coisas cuja consciência ainda não está despertada, em nós. A escrita dele alarga caminhos, estruturas e pensamentos. Um autor que nos conduz para lugares que desconhecemos porque nunca os visitamos. Nietzsche utiliza-se de martelos para nos lembrar de que há massa crítica, em nós, e que, portanto, é preciso usá-la. Autor que não dialoga com a escrita única, com o caminho único, com o sentido exclusivo. A extensão e o alcance da escrita de Nietzsche o tornaram um dos clássicos da literatura. Ele sempre tem o que dizer, e o que ele diz ainda faz muito eco, em nós.
Neste pensamento, uma palavra
tensa: abismo. Não há como dialogar de forma calma, ponderada e civilizada
diante o abismo. Diante dele, apenas uma necessidade: sobrevivência.
Etimologicamente, a palavra vem do latim abyssus (“a” significa “sem” e “byssus”
significa “fundo”). Literalmente, a palavra abismo significa “sem fundo”, sem
profundidade. Cair num abismo significa que nunca vamos parar de cair simplesmente
porque não há fundo, não há fim, em si. Uma ação contínua, ininterrupta.
Qual abismo nos observa? “...quando
se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para você.” Muitas
são as leituras para este pensamento, recordando que Nietzsche era um
autor de muitas compreensões. Se são muitas as leituras permitidas, ouso
escolher a compreensão do abismo como uma metáfora da profundidade ininterrupta
que vai em cada um de nós. Somos este abismo, este sem fundo. Quando ousamos
nos conhecer, nos aproximamos deste abismo. Espiamos. O que enxergamos? Que ele
também nos vê.
O olhar do abismo traz nossos
ecos, agora revelados. Nossos ecos revelados mostram tudo aquilo que não
está nas nossas mãos, como a natureza transitória e aleatória da vida, que
tanto nos intimida, amedronta e assusta.
O abismo nos traz a consciência sobre
ele. Agora ele existe. Está ali. Como escondê-lo? Tapá-lo com areia e cimento?
Pode funcionar, se quisermos continuar com as nossas regras de vidas superficiais,
se quisermos lutar ao lado da mesmice, se defendermos conteúdos de estruturas supérfluas.
O nosso padrão de fingimentos atende a uma certa demanda. Pode funcionar. Mas,
no mesmo instante em que pensamos que estas pinturas manchadas de precarização
do ser podem funcionar, silenciamos. No silêncio, nos lembramos das cicatrizes
como sinônimo do essencial. Decidimos, então, voltar para a ponta do abismo
para tentarmos ouvir o que ele nos diz e nos revela. Percebemos que este será
um trabalho infinito e que, todas as vezes que olharmos muito para um abismo,
ele também olhará muito para nós.
Somos feitos do mesmo papel, então?
Somos feitos das mesmas perguntas? Qual tecido nos forma? O abismo tem
linguagem distinta a minha? Descobrimos que há muito trabalho a ser feito. E
que as vozes do abismo somente nos serão claras, ou pelo menos um pouco
claras, se buscarmos simplicidade. E simplicidade somente com muito
trabalho. Mas me parece que temos induzido a nós, e aos outros, a muito
sofrimento na criação de muros. Adoramos brincar de esconde-esconde o tempo
todo. A infância é aqui, nesta “...terra de gigantes, que trocam vidas por diamantes...”,
como disseram os Engenheiros dos Hawaii. Uma infância de narrativas criadas
na superficialidade, e não na naturalidade.
Somos contraditórios e
equivocados. Mas ainda há tempo. Não podemos olhar para tudo e para todos ao
mesmo tempo. Mas ainda há tempo. Basta iniciarmos abrindo mão da compra de
certas coisas. Mas me parece que têm havido diálogos que não estamos
dispostos a ter.
Precisamos nos mover para que posições
possam ser revistas. Irmos além da superfície. Este é o convite do abismo. Ele
nos olha porque ressoa sobre nós. Ele diz o que insistimos em calar. Se olhamos
para ele, ele também tem o direito de olhar para nós. Talvez seja por isso que
conviver com ele seja amedrontador. Mais fácil será permanecermos na
permissividade, na acomodação do discurso da reverência, na inutilidade da busca
do inédito. Isto não funciona. Nunca funcionou. Sabemos disto. Mas adiamos esta
conversa.
Descermos no abismo. Mas até
onde? Não há “onde”. Um trabalho ininterrupto. Conhecer-se não está na delimitação
do transcorrer do tempo, mas no sentido desta ação. Um trabalho ininterrupto de
saída da alienação, essencial para deixarmos de engordar a fileira dos
esgotados.
“...quando se olha muito tempo
para um abismo, o abismo também olha para você.” Um fragmento de um diálogo
maior de Nietzsche, mas só este trecho já nos traz muitas reflexões. O
abismo sou eu, você, o mundo, o desconhecido, o igual, o escondido, o contraditório,
a dor, a crítica, a inveja, o eco que tudo faz em mim, em você. Muitas
possibilidades, muitas explicações, mas, acima de tudo, um lugar que nos
observa, mesmo alheio a nossa vontade. Observa-nos porque faz parte de nós, indissociável,
indivisível. O abismo é o caminho que provoca o reencontro com o escondido, um
reencontro conosco. O abismo faz o papel de anfitrião da festa: as devidas
apresentações da gente pra gente mesmo. Muito prazer!
Quero encerrar este texto, mas não
a reflexão, com uma provocação do Professor Cortella, que diz:
“Viver é subjetivo, não é um exercício
de precisão. Despencamos de nós mesmos porque não temos a mínima intimidade conosco.”
Que a gente olhe para o nosso abismo, para aquilo que vai no nosso sem fundo, no nosso infinito e reconheça a nossa imprecisão, a nossa dúvida, as nossas precariedades. Isso tudo nos molda, nos faz, nos torna. Não há como atingirmos um certo patamar de Ser sem aceitarmos o que dificulta sermos. Estamos numa condição de homens esgotados porque não estamos conseguindo lidar com o que nos esgota. Estamos sendo marcados por uma condição de insuficiência, o que nos torna reféns de uma angústia triste. Mas ainda há tempo. É preciso buscar esta intimidade conosco, como disse Cortella. E essa intimidade está a nossa espera, bem no fundo do abismo, do nosso, do meu e também do seu. Íntimos, eu de mim, e você de você, não teremos mais medo do abismo, e o olhar dele será parte do meu. Simples assim.