segunda-feira, 24 de julho de 2017

O recesso envergonhado

Na semana passada, o recesso parlamentar teve início. Durante o ano, são 50 dias de recesso: de 22 de dezembro a dois de fevereiro, e de 17 de julho a primeiro de agosto. Está na Constituição Federal. É da lei. É um direito. É meu direito.

Mas porque é meu direito, isso me dá o direito de exercê-lo e de não pensar nas consequências?

Fiquei com esta pergunta na cabeça. Não há respostas prontas, como sempre. Afinal, se é meu direito, qual é o problema em exercê-lo? Por que eu não deveria exercê-lo? Por que não o fazer valer ao meu favor? Ao mesmo tempo, um direito que me favoreça, mas que impacta, negativamente, o outro, é, de verdade, um direito? Do ponto de vista legal, sim, é um direito, mesmo que isto acarrete impactos negativos para o outro. Mas do ponto de vista ético e moral, qual é o meu direito de exercer o meu direito em detrimento do próximo? Só porque está na lei? Mas o que pensamos sobre isto? Por que acatamos respostas prontas como esta: “é porque está na lei? ”

Geralmente quando as respostas que se têm não são suficientes para as perguntas que se faz, ficamos mergulhados na superfície. Porém, já poderíamos nadar em outros mares e aprofundar outras questões, e aprender velhas coisas que já deveríamos ter aprendido. Ainda discutimos as mesmas coisas porque isto nos permite navegar nos mesmos mares. É confortável e não exige do nosso pensar e do nosso agir.

Acomodar-se com “é porque está na lei” é abrir mão da nossa capacidade de pensar e de repensar nossa estada aqui. É abrir mão da possibilidade de fazer a diferença na vida do outro. Quando repensamos nossas atitudes, quando abrimos mão de “um direito” porque este mesmo direito prejudicaria o próximo, abrimos espaço para navegar em outros mares e subimos um degrau na nossa jornada. É uma escolha.

Há tempos, na vida, que ficarmos mergulhados na superfície é conveniente como desculpa para não precisarmos nos investigar e aprender o novo. Este mesmo novo que é velho aos olhos dos que vão à frente de nós.

O recesso parlamentar é um direito. Os políticos não estão gozando de férias irregularmente. Mas é moral e ético interromperem os trabalhos após inúmeros problemas criados, inclusive, por eles próprios, a todos nós? Temos de fazer valer, sim, os nossos direitos, mas desde que estes mesmos direitos não interfiram no direito do próximo. Exceto isto, não são direitos, mas sim, egoísmos disfarçados.

Um recesso com vergonha. Envergonhado e impotente.

O País está com inúmeros problemas de ordem moral e milhares de pessoas sofrem com estas consequências. Mas a lei permite o recesso e nos escondemos na lei para usufruí-lo.

Obviamente que não serão estes quinze dias que resolverão todos os problemas do País. No entanto, se cada um de nós abrir mão destes nossos direitos questionáveis, estes quinze dias se tornarão milhares de dias eficientes. Direitos são muito bem-vindos e devem ser usufruídos. Mas me refiro, neste texto, exclusivamente aos direitos questionáveis, aqueles direitos que, se exercidos, prejudicarão e muito o próximo. A probabilidade de isto acontecer é bem elevada. Estes direitos devem ser repensados por nós e, se necessário for, abrirmos mão deles sem que, por isso, tenhamos de fazer propagandas a respeito a nosso favor. Marketing pessoal não foi uma boa criação nossa. Isto só nos levou ao auge da nossa vaidade desmedida e injustificada.

O individualismo, definitivamente, não deu certo. Mas é preciso praticarmos esta verdade. O mundo está cheio de teorias e carente de práticas. Caminharmos para a coletividade, sem hipocrisias, é imprescindível. Não esta coletividade disfarçada e não internalizada, mas uma coletividade verdadeira, cuja capacidade de questionar os seus próprios direitos construirá uma diferença real na sociedade na qual vivemos todos.

Paulo de Tarso, uma das grandes personalidades da nossa História e um dos responsáveis pela disseminação dos ensinamentos de Jesus, aos povos antigos, dizia: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém”. Portanto, é preciso questionar e elevar o nosso patamar de pensamento e de construção. A consciência como base de nossas decisões e não apenas a lei.

Nem tudo aquilo que é meu por direito é meu por ética e moral.

O professor que abona faltas injustificáveis porque tem direito a cinco faltas abonadas por ano. E os alunos, deste mesmo professor, muitas vezes têm aulas deficientes porque o professor substituto não foi preparado eficientemente para tal. “Ah, mas isso não é culpa do professor”, alguns poderão dizer. Realmente não é. Mas ficar neste discurso é o mesmo que querer justificar o mau atendimento porque se ganha mal. A mediocridade pela mediocridade. O seis pela meia dúzia. Enquanto um de nós não der o primeiro passo, andaremos ainda em círculos por muito tempo.

Abrir mão das faltas abonadas é uma forma de fazer a diferença, de verdade, na vida dos alunos, e de construir, silenciosamente, um mundo melhor. Abrir mão de direitos questionáveis é receber muitos direitos verdadeiros, lá na frente.

O recesso dos parlamentares é fruto do excesso de más condutas. E o recesso é uma delas. Como não se envergonhar de interromper os trabalhos simplesmente porque está na lei? Deixar coisas para agosto porque o recesso chegou. O recesso é um excesso que inibe o acesso de muitos. Mas está na lei...

Uma superficialidade de pensamentos. Uma ausência de responsabilidade devido à farta liberdade e o não saber o que fazer com ela.

O recesso é bem-vindo desde que possamos desfrutá-lo. Mas não é o caso. Deturpamos o conceito do descanso porque não há o respeito àquele que sofre as consequências desta deturpação. Eles param aquilo que nem começaram. Eles param quando todos pedem ação.

Somos seres gregários por natureza, agregamos por conveniência e segregamos por escolha.

O recesso que excede. O recesso do excesso. O recesso do abuso.

O abono do abandono. O abono do descaso. Abono as faltas porque o meu direito está em primeiro lugar. Dão-me o direito ao abono? Abro mão dele. Simples assim. E se isto nos custar sermos chamados demagogos, o problema não será nosso, mas sim daquele que carrega a demagogia em sua bagagem de decisões para a vida.

Aquele colaborador que quer ser demitido para receber seus direitos, simplesmente, reduz o ritmo, esquece, de propósito, prazos, prejudicando, assim, toda a equipe. Realiza de forma ineficiente o trabalho para produzir argumentos negativos contra ele próprio e assim, conseguir ser mandado embora. “Quero ser mandado embora para não perder os meus direitos. ” De quais direitos esta pessoa fala?

Infelizmente ainda somos movidos pelo egoísmo e pela triste necessidade de termos nossas falências existenciais atendidas. Por isso privilegiamos os nossos direitos em detrimento do próximo, mesmo que os nossos direitos os prejudiquem.

Penso que enquanto tivermos mergulhados nesta ausência de pensar devido à preguiça do construir, ainda faremos valer, por muito tempo, nossos direitos questionáveis. Afinal de contas, estamos em julho, e o recesso está aí.

As facilidades que me isentam das responsabilidades. O supérfluo dividindo espaço com o inerente, com o relevante.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma provocação de François de La Rochefoucauld, escritor francês, que diz:

“A conveniência é a menor de todas as leis, mas é a mais seguida. ”

Ainda privilegiamos o pequeno, o que nos dá visibilidade, o que alimenta as nossas vaidades e o que atende as nossas infundadas necessidades. A busca pelo coletivo verdadeiro como fundamento e razão para as nossas escolhas deve ser a nossa direção e a nossa decisão de vida. Os nossos direitos devem ser cumpridos, mas os reais e não os questionáveis e duvidosos que possuem apenas uma via de acesso: ao da satisfação individual. O acesso aos nossos verdadeiros direitos deve nos permitir passar, assim como também o próximo. E quando conseguirmos atingir este ponto, teremos deixado de seguir a conveniência por absoluta falta de sentido e por termos, finalmente, enxergado o tamanho dela: irrelevante e pequena.

terça-feira, 11 de julho de 2017

O seu par de tênis

Muitas são as moedas que nos alimentam. Moedas físicas, concretas, como o dinheiro, o alimento, a vestimenta, fundamentais para a nossa estada aqui. E as moedas abstratas como a saúde, o amor, o tempo. Todas elas essenciais para que a nossa vida tenha sentido, colorido, beleza e brilho. Valorizá-las é trazê-las, cada vez mais, para perto de nós.

O texto de hoje dedico ao tempo: este parceiro invisível, discreto, calado, mas que tem pressa. Ele não costuma ser prolixo e sabe discernir quando é bem ou mal utilizado. Aos que o desperdiçam, sua cobrança é implacável. Vinga-se da forma mais cruel: ele não volta mais. Simples assim. E quando se vê, é Natal de novo. E o carnaval está logo ali. Aproveitá-lo e usá-lo com sabedoria é uma das virtudes da vida. Perdê-lo com inutilidades e futilidades autoriza nossas idades avançarem sem ter valido a pena. É preciso, portanto, não ir por este caminho.

A beleza do tempo consiste na nossa boa relação que se faz com ele. Ele é uma das nossas maravilhosas moedas. E como toda moeda, é um símbolo de troca que precisa ser justo para os dois lados: para nós (que ele seja utilizado a nosso favor) e para o próprio tempo (que ele seja utilizado para aquilo que é útil e sábio). É preciso lembrar que ele não aceita desaforos.

O filme abaixo, que exemplifica o que traz o texto, mostra a trajetória do San Diego Splash, um time de basquete cujo Tempo foi justamente homenageado.

vídeo tirado da internet

Após assisti-lo, a vontade que se tem é de calçar os tênis, se é que já não estão calçados. E se ainda não estão, a pergunta que fica é: por quê?

A lucidez destas senhoras traz profundas reflexões e propostas para quebra de modelos mentais falidos, como:

- aquele que acha que não dá e que não tem tempo;
- que o desperdiça com crenças limitadoras a respeito de si próprio;
- que se diz velho demais para começar ou novo demais para parar;
- que tem medo do sucesso e/ou do fracasso;
- que abre mão do tentar por medo da crítica de quem o inveja por ter começado;
- que permite que a vergonha se sobreponha ao desejo de fazer;
- que dispensa roteiros inteligentes por optar por caminhos longos e desnecessários, como desculpa para não chegar a lugar algum. E depois dizer que não fez por falta de tempo;
- que cria etapas injustificáveis para não concluir o que está fazendo;
- que dá ouvidos a comentários preconceituosos e limitantes. Afinal, jogar basquete aos 91 anos?

Temos uma relação problemática com o tempo. Isto é uma realidade. Felizes aqueles a quem o tempo concedeu a honra da amizade dele. Precisamos estar de mãos dadas com ele a caminho da mesma direção. Uma direção sustentável, firme e sólida. E para isto, a nossa travessia é o que importa, como dizia Guimarães Rosa. Se a nossa travessia for sólida e lúcida, a nossa boa chegada será somente uma feliz consequência.

Portanto, calçar nossos pares de tênis e irmos jogar o nosso basquete, hoje e agora, é valorizarmos o nosso tempo e a nossa travessia.

O tempo é amigo daquele que se deixa conduzir por ele. Mas é um carrasco para aquele que se deixa escravizá-lo. Por ele, apenas podemos vivê-lo da melhor forma que podemos. E uma das melhores formas de se viver é estarmos calçados com os nossos tênis. A postos. Prontos.

A idade não deve ser a nossa desculpa, mas sim a razão da nossa realização. Ela é, apenas, o lembrete mental de que nossa estada aqui é finita. E que é preciso acelerar para aquilo que, verdadeiramente, importa.

Façamos do tempo um aliado e não um adversário que buscamos neutralizá-lo com cremes inúteis e ineficientes. As rugas, indicativo do passar do tempo, representam mais que marcas físicas: representam a vida vivida na plenitude. Representam a consciência em paz, do tempo vivido, com sabedoria. No entanto, a falta delas, indica possibilidades que poderão não vir.

A juventude é, apenas, a responsabilidade anunciada da obrigação que se tem de viver certo e viver bem. A velhice é a pergunta direta da vida nos cobrando o cumprimento desta responsabilidade. E se vivemos bem a nossa vida, com o tempo ao nosso favor, e ainda de tênis calçados, haverá um lugar, certamente, para nós, no grupo dos privilegiados.

Dentro ou fora das nossas quadras de basquete, que as nossas limitações sejam, apenas, a crença na nossa capacidade. Que o “se ao menos” passe para o “a próxima vez”.

Alguém poderá, então, perguntar: mas como sustentar tamanha vitalidade e disposição? Não sei a resposta. Arrogante seria se eu soubesse. Mas desconfio que um dos caminhos para se chegar a esta resposta, a travessia a qual Guimarães Rosa se referiu, é buscar, sem cessar, as nossas necessidades e preenchê-las. Sempre e sempre.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um diálogo entre Alice e o Chapeleiro, da obra Alice no País das Maravilhas, que diz:

Alice suspirou enfastiada. Eu acho que você deveria fazer coisa melhor com o seu tempo, ela disse, ao invés de gastá-lo com charadas que não têm resposta.

Se você conhecesse o Tempo tão bem quanto eu conheço, o Chapeleiro falou, não falaria em gastá-lo como se fosse uma coisa. Ele é uma pessoa.

Eu não sei o que você está dizendo, disse Alice.

Claro que não, o Chapeleiro disse, sacudindo a cabeça desdenhosamente. É muito provável que você nunca tenha falado com o Tempo!

Um livro indispensável para alargar os nossos horizontes. Que a gente fale mais com o tempo e busque compreendê-lo. Que a gente busque ser amigo dele e considerá-lo, de verdade, como Alguém. Porque ele é. Compreendendo-o, viveremos melhor a cada dia. E quando nos dermos conta, estaremos calçados com os nossos tênis sem nos lembrarmos de quando os colocamos.  Calçados, significa que estamos no jogo, na quadra, na vida. E de dentro da quadra, será quase impossível ouvirmos as vozes daqueles que tentarem nos desestabilizar de alguma maneira, mesmo que estas vozes também sejam as nossas. Vida longa ao San Diego Splash!