terça-feira, 8 de dezembro de 2015

A irregularidade que nos conduz

Às vezes, entramos em lutas apenas para nos lembrarmos das lutas que fugimos.

Às vezes, entramos em lutas apenas para nos conscientizarmos das lutas que não deveríamos ter entrado.

O passar dos anos nos dá mais armas para encararmos as armadilhas.

Caráter para ganharmos. Crenças para perdermos.

Falta de caráter para disfarçarmos.

Força para conquistarmos. Força para destruirmos.

Crença no possível porque não acreditamos no impossível.

Falta de sonho.

Chegamos para criar opções. Chegamos para tirar sonhos.

Chegamos para produzir o que ninguém quer comprar ou o que ninguém precisa usar.

Entendemos o limite para ultrapassá-lo.

Entendemos o limite de alguém exatamente para não o respeitar. Somos bons nisto.

O que define são os detalhes.

As derrotas são inevitáveis para se chegar às vitórias. Mas quem quer viver as derrotas? Não podemos passar para alguém esta parte ou culpar alguém?

O erro não nos pertence. Eu acerto. Ele erra. O erro não nos representa. Somos seres perfeitos. Não sei o que fazemos aqui, em nosso mundo repleto de erros. Acho que estamos aqui por engano.

Deus errou na estratégia. Acho que confundiu as nossas fichas e nos mandou para cá indevidamente. Que pena! Agora vamos precisar ficar.

A nossa força nos tira do gingado da vida.

A lentidão tem tempo para mostrar as nossas falhas.

A rapidez esconde as nossas falhas.

As marcas indicam paradas para novos caminhos.

O carisma nos diferencia dos iguais e dos formatados.

Os riscos nos levam ao deslize, mas também aos acertos.

O oposto nos mostra que há outro caminho, mas também nos mostra coisas que não gostaríamos de ver agora. “A novela vai começar. Não pode ser depois? ”

A reflexão serve para sabermos em qual parte da história estamos, mas também serve para nos lembrar de qual parte dela deixamos de construir e de escrever.

Mas ainda dá tempo.

Falando nele, ele sabe ser cruel com quem não é amigo dele. Mas sabe ser um excelente bem a quem o trata bem. Interesseiro! Do que adianta discutir com ele? No final ele está sempre certo, mesmo. É melhor aceitar e seguir.

Às vezes, acho que ele não tem muita razão, não. Mas não mesmo! Mas o deixo pensar que tem. Assim ele continua sendo meu amigo. Não é bom criar inimizades com quem é mais forte que a gente.

Dormir é excelente para o repouso, mas também para perder o bonde. Se perdermos o bonde acordados, menos mal. Quem sabe alcançamos o próximo? Se bem que não tenho certeza de que ele passará. Enfim, não custa verificar o itinerário. Mas perder o bonde porque dormimos é se antecipar às derrotas da vida.

A fumaça dá o tom do show, mas também impede a nitidez. O que há ali? Não consigo enxergar bem.

Acordar para vencer. Ou seria vencer para acordar?

Dormir para esquecer. Ou seria esquecer para poder dormir?

A realidade que se mistura com a utopia porque a realidade é uma utopia.

A percepção rompe padrões. Mas só se alguém deixar...A percepção traz a interpretação que traz a escolha.

É preciso tecer os nossos bordados internos para descobrirmos as nossas costuras. Costuras que costuram. Costuras que descosturam. Costuras que embelezam. Costuras que enfeiam. Costuras que ficam à mostra. Costuras que ficam escondidas.

Só passeando dentro da gente vamos, de verdade, nos conhecer. Precisamos colocar uma poltrona dentro de nós para assistirmos a tudo, assistirmos às nossas reações.

Nossos pequenos abismos que habitam dentro da gente. Estes abismos são riquezas brutas que ainda não tivemos tempo de lapidar porque estávamos verificando o nosso Facebook.

Nossos problemas nos constroem. Mas esta construção é lenta, bem lenta.

“Não dá para pular algumas etapas? ”, alguém pergunta. “Claro, Senhor, podemos fazer um desconto de 10 etapas e o restante parcelar no cartão em seis vezes sem juros. ” “Ah, que ótimo, vou levar. ”

É preciso coragem para atravessar a ponte e voltar de lá para povoar os terrenos desconhecidos. Mas para ir e voltar da ponte é preciso estar conectado com a verdade. Mas a verdade de quem? A nossa.

Os estranhos se falam porque os que se conhecem estão ocupados no WhatsApp.

Quem são os nossos heróis? Mas a pergunta é: temos heróis? Temos que ter heróis?

Nossos heróis são os que nos permitem sonhar. São os que enxergam a nossa alma.

São os que sabem ler e ouvir os nossos silêncios. São os que completam os nossos vazios.

São os que descobrem terrenos férteis em nós e tiram a placa de “aluga-se”.

São os que nos ensinam a conversar com a nossa escuridão. E o melhor: nos ajudam a localizar o interruptor. São os que chegam quando todos já se foram.

Irregularidades: uma das grandes verdades de nossas vidas. Queiramos ou não. Se quisermos acertar e trilhar o caminho da regularidade, o caminho da irregularidade deverá ser percorrido antes, bem antes.

Enfim, quero encerrar este texto, mas não a reflexão com um pensamento de Dostoiévski, escritor russo, que diz: “é preciso encher minhas medidas”.

Como estão as nossas medidas? A resposta cabe a cada um de nós.

Que saibamos ocupar todos os espaços e preencher as nossas medidas com o sabor e o cheiro da vida. Somente desta forma, acredito, poderemos dizer que vivemos.

Uma vida de retas, curvas, altos, baixos, solavancos, quedas e subidas. Uma vida cheia de irregularidades que nos movem, que nos transformam, que nos formam.

A irregularidade é o caminho para “o encher minhas medidas. “ Fora isso, só a vaidade de acreditar numa vida sem curvas e sem paradas. Numa vida linear. Numa vida sem solavancos.

Acreditar nisto é ter morrido sem saber.

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Qual posição da mesa você ocupa?

O lugar era um restaurante. Muitas pessoas em várias mesas. Mas em uma, especialmente, algo chama a atenção: alguns canudos de formatura espalhados pela mesa denunciavam algumas conquistas alcançadas. Não foi isto o que chamou a atenção, mas sim um senhor de quase 80 anos, sozinho, isolado, sentado próximo à ponta da mesa, da mesma mesa aonde os canudos de formatura estavam espalhados.

Os canudos de formatura são encarados como conquistas. Mas por que não a velhice também? Muitos respeitam a velhice; muitos não. Muitos a encaram como conquista; muitos não. O fato é que a velhice é um estado natural de todo aquele que vive a plenitude de sua vida. Aquele que não envelhece é porque está morto.

Não sei se o pessoal daquela mesa sabia disto.

Muitas vezes não nos damos conta do quanto contribuímos para aumentar o sentimento de isolamento do outro. E vice-versa. Somos assim. Em função de nossa incompletude, vamos fazendo coisas, tomando atitudes sem prestarmos muito atenção às consequências.

Nosso comportamento hostil e desatencioso convida, ostensiva e diariamente, várias pessoas ao caminho da solidão. Somos muito bons nisto.

Estar numa festa, porém sem participar dela: talvez este tenha sido o sentimento daquele senhor sentado próximo à ponta da mesa. Quem o colocou lá? Talvez ele mesmo tenha se colocado lá. Não dá para saber. Mas o fato é que ele estava sentado lá, bem próximo à ponta da mesa. O lugar aonde nos colocamos é aonde, efetivamente, estamos.

Dependendo do lugar que você ocupar na vida ou na mesa, você simplesmente não participará, não terá voz, não terá acesso ao falar. Ou ao contrário, você sempre será convidado a falar, mesmo que não tenha nada a dizer. Mas como vivemos no contexto das aparências, vamos fingindo que falamos e o outro fingindo que entende. E assim vamos criando mundos paralelos e sem muitas culpas e escrúpulos. Afinal, quem vai nos procurar para nos responsabilizar?

Aquele senhor usava óculos de elevada graduação que davam pistas do quanto ele tinha visto na vida. Mas alguém estava interessado? Acredito que não porque ele estava sentado próximo à ponta da mesa. E quem se senta próximo à ponta da mesa corre sérios riscos de ficar à margem da vida, à margem de si próprio. Simplesmente à margem.

Sentar próximo à ponta da mesa é ter, como companheira, uma velha conhecida nossa: a solidão. Esta visita sorrateira que chega sem avisar e o pior: tem as chaves de nossa casa. Portanto, ela não toca a campainha: simplesmente entra.

A solidão é silenciosa. Não pede licença. Vê um espaço e se acomoda. Não faz distinção por raça, idade e sexo. Não é preconceituosa. Só quer um espaço para se manifestar.

Penso que a pior solidão que existe não é aquela cuja vida te proporcionou, sem te dar muitas escolhas. Claro, esta é triste, também. Afinal, quem quer ser solitário? Mas penso que as contingências da vida que o levaram ao estado de solidão não podem ser calculadas e medidas por uma régua o tempo todo. Portanto não há como controlar tudo. Nem sempre temos escolhas. Nem sempre temos as melhores escolhas. É preciso aceitar e seguir.

Mas penso que a pior solidão é aquela imposta por quem nos rodeia, pela sociedade, por aqueles que nos conhecem, mesmo que seja sem perceber, sem querer. A solidão provocada por aqueles que te esquecem, mesmo quando você está presente. E para completar, a solidão que acompanha a velhice.

A solidão não acontece apenas quando se está só. Esta solidão é conhecida. Esta solidão é sabida. É uma solidão batida, que já bateu à porta de muitos.

Falo da solidão sentida na presença de muitos, na presença de todos. Só que ninguém percebe você, ninguém vê você, mesmo estando todos presentes. E quando se dão conta da sua presença é apenas para te levarem ao banheiro... como aconteceu com aquele senhor sentado próximo à ponta da mesa.

Ir ao banheiro é uma necessidade fisiológica, apenas. E as necessidades essenciais? Carinho, atenção, afeto...meu Deus, quem inventou isto?

A solidão que ninguém vê, que ninguém sabe ou finge que não sabe.

Estamos todos à mesa. “Estamos nos divertindo, não estamos? ” “Qual é o problema de se sentar próximo à ponta da mesa? ”, alguém poderá dizer.

Aquele que sofre de solidão não ousará discordar. Como discordar se vivemos a tirania da felicidade? Nossas infâncias foram educadas para pedirem desculpas todas as vezes que choraram.

A solidão se dá quando a sua história não interessa a mais ninguém. Quando alguém dá um sorriso frouxo para você como que a dizer: “e daí? ”

A solidão se dá quando se envelhece: raros são os velhos que têm companhia e atenção. Tratamos os velhos como se fosse errado envelhecer. Como se o envelhecimento fosse um problema. Problema é não enxergar na velhice uma conquista.

Temos falsos escrúpulos para dizermos a palavra “velho”. Qual é o problema? Por que falamos “idosos” e não “velhos”? Isto não é pejorativo. O que é pejorativo é não valorizar a velhice, os anos percorridos e as conquistas. Idoso é aquele que tem muita idade. Qual é a diferença?

Desprezamos a velhice porque a vaidade nos domina. O culto à juventude conduz à miopia e à doença da alma.

Lembramos dos velhos para levar até eles o remédio do horário marcado ou para levá-los à consulta marcada. Raros são os que se lembram deles para ouvirem suas histórias e aprenderem com tanta sabedoria.

Pobres míopes somos! Arrogantes em nossas frágeis escadas da ignorância. Mas só saberemos a fragilidade delas após a queda.

A solidão se dá nisso. Velhos são os outros. Talvez nós ainda não sejamos somente por uma questão de tempo. Mas se continuarmos aqui, chegaremos à velhice. Velhos somos todos nós.

A solidão se dá quando você percebe que o que você quer contar ninguém quer mais ouvir.

A solidão é um estado de estar presente-ausente: presente fisicamente e ausente na alma.

A solidão acontece quando o contexto te coloca para fora, sentado próximo à ponta da mesa. Estar sentado próximo à ponta da mesa simboliza a facilidade de te tirarem de lá.

Quem se senta próximo à ponta da mesa sai sem ser notado.

Solidão não é um estado desejado: é um estado imposto, mesmo que por nós mesmos.

Solidão é um querer sair quando ainda ninguém chegou.

Solidão é querer o silêncio como companhia.

É quando ouvir os pássaros começa a incomodar e quando o sofrimento passa a ser o seu guia.

Solidão é não ter paciência para ouvir a história do outro.

A solidão se dá quando perdemos o sentido sobre aquilo que fazemos.

Quando um jovem está solitário, dizem: “É a juventude! Eles adoram ficar sozinhos. ” Mas quando um velho está sozinho dizem: “Coitado” ou “Quem vai cuidar dele? ”

A juventude tem um álibi que não serve para a velhice. Para tudo a juventude tem desculpas e um álibi; para nada a velhice tem desculpas.

Envelhecer é um ato de coragem num mundo em que a velhice incomoda. Talvez ela incomoda porque tem muito a dizer.

Ser velho não dá ibope e não vende numa sociedade corruptível. Ser velho é um estado natural e não uma culpa apenas na sociedade incorruptível.

Vivemos numa sociedade invertida: o valor é dado àqueles que têm e não àqueles que são.

Os excessos nos impedem de enxergar o que realmente tem valor, o que realmente importa.

Olhar e perceber deveria ser uma obrigação. Olhamos porque está a nossa frente, mas não percebemos. Quem estava ali? “Não vi, me desculpe. Mas a propósito: tinha alguém ali, mesmo? Não sei. Não vi. Estou indo agora. Desculpe. Tenho pressa. Depois nos falamos. ”

A velhice precisa ser percebida, sentida, vivida. Ela traz os seus problemas assim como a juventude também.

Do que adiantarão os canudos de formatura se não valorizarmos o avançar do tempo e da idade para podermos viver tudo o que eles poderão nos proporcionar?

Somos paradoxais. Seres paradoxais. A juventude envelhece a cada minuto transcorrido.

“Nada é mais atual do que envelhecer”, disse Arnaldo Antunes.

Por isto te faço uma pergunta: qual posição da mesa você ocupa ou tem ocupado? Se você estiver sentado próximo à ponta da mesa, você saberá o lugar que você ocupará e tem ocupado na vida. A menos que você se levante imediatamente e vá buscar o assento que cabe a você por direito e por merecimento.

Só não demore para fazer esta busca. Talvez não haja mais espaços na mesa e você, infelizmente, deverá se sentar próximo à ponta da mesa...

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Você salvou alguma estrela-do-mar hoje?

Era uma vez...

...um escritor que morava numa praia tranquila, próxima de uma colônia de pescadores. Todas as manhãs ele passeava à beira-mar, para se inspirar, e à tarde, escrevia.

Um dia, caminhando na praia, viu um menino pegando as estrelas-do-mar que estavam na areia, uma por uma, e jogando-as novamente de volta ao oceano.

- Por que você está fazendo isto? – perguntou o escritor.

- Você não vê? – disse o menino. A maré está baixa e o sol está brilhando. Elas vão secar e morrer se continuarem expostas ao sol e à areia.

- Menino, existem milhares de quilômetros de praia pelo mundo e centenas de milhares de estrelas-do-mar, todas espalhadas pelas praias. Que diferença faz? Você joga umas poucas de volta ao oceano. A maioria vai perecer de qualquer forma.

O menino pegou mais uma estrela na areia, jogou-a de volta ao oceano, olhou para o escritor e disse:

- Para esta, eu fiz diferença.

Naquela noite o escritor não conseguiu dormir e escrever. Logo pela manhã, ao acordar, foi para a praia. Procurou o menino e juntos começaram a devolver as estrelas-do-mar ao oceano.

imagem tirada da internet

A pouca idade daquele garoto mostra que a experiência de vida, no caso daquele escritor, nem sempre é sinal de sabedoria. Deveria ser. Mas não é. Todos aprendem com todos.

Muitas lições e muitas leituras podemos fazer a partir desta história. Muitas reflexões também. Basta abrirmos os nossos corações e as nossas mentes. E talvez este seja o problema: abrirmos os nossos corações e as nossas mentes. Penso que estamos um pouco endurecidos, cascudos, descrentes. E tudo isto dificulta, e muito, enxergarmos e salvarmos estrelas-do-mar.

Elas estão por toda parte. Mas não as enxergamos. Ou se as enxergamos, poucos são os que se abaixam para pegá-las e devolvê-las ao mar. “Que diferença faz? A maioria vai perecer de qualquer forma...”. Não para aquele menino, não para aquela estrela-do-mar.

Para aqueles que acreditam, sempre algo pode ser feito; sempre há uma forma diferente de se fazer as coisas. Sempre há uma chance. Sempre há uma saída.

E se nós fôssemos aquela estrela-do-mar? Como é indescritível a sensação de ser ajudado. Só quem passou por isto pode saber.

A estrela-do-mar, neste texto, pode também representar, de forma metafórica, qualquer oportunidade que deixamos passar, coisas que deixamos para amanhã. Para um amanhã que talvez nunca chegue.

O amanhã existe, claro. Mas apenas para aquilo que realmente deve ser deixado para amanhã. Existem coisas que devem ser deixadas para depois, para amanhã e até para depois de amanhã. Mas existem coisas que precisam ser feitas hoje, agora. E salvar estrelas-do-mar é uma delas: não pode ser deixado para depois ou achar que isto é trabalhoso demais.

Colocamos o esforço como um empecilho para a ação. Acreditamos na derrota mesmo antes de tentarmos. Por quê? A tal da preguiça ociosa e improdutiva que nem o Sociólogo Domenico de Masi, em sua obra O Ócio Criativo, daria conta disto.

Encontramos dificuldades aonde elas não existem. Fazemos questão de enxergá-las. Colocamos até óculos para isto.

O esforço dá trabalho. Ser grande dá trabalho. Ser pequeno é muito fácil. Simples e rápido.

Aquele menino foi grande em sua atitude. Aquele escritor foi pequeno em sua atitude.

Ser grande implica coragem. Implica colocar o valor da ação, em si, acima de qualquer esforço que seja necessário realizar para que aquilo que se deseja dê certo. Aquele que é grande não vê o esforço, o trabalho, o cansaço como empecilhos para o avançar. Aquele que é pequeno sempre encontra uma brecha para deixar para amanhã, para o não fazer.

Quem é grande se abaixa para salvar uma estrela-do-mar. Quem é humilde enxerga valor nisto e coloca à disposição da natureza, a sua força para colaborar com ela.

Quem é pequeno, além de pisar nas estrelas-do-mar (“desculpa, foi sem querer”) não se abaixa para salvá-la. Ele é pequeno demais para tanto. Além do mais, para quê, não é mesmo? Amanhã terão tantas outras estrelas-do-mar aí, novamente? Quanta perda de tempo!

Perder tempo é passarmos por este mundo e apenas deixarmos as nossas marcas de retiradas e nenhuma de reposição. Perder tempo é acharmos que o nosso tempo é mais importante do que o da estrela-do-mar. Quem falou que somos mais importantes? Se acharmos isto, será bom revisitarmos alguns conceitos básicos...

A vida é muito preciosa para acharmos que estamos sozinhos aqui. Acharmos que estamos muito ocupados. Não estamos tão ocupados assim. Não somos tão ocupados assim. Sabemos que não. Mas enquanto o outro não descobrir isto, vamos brincando de faz-de-conta.

Se quisermos salvar estrelas-do-mar certamente teremos tempo. Tudo é uma questão de prioridade. O que priorizamos? O compromisso com o que importa ou o compromisso com aquele que continuará alimentando nossas vaidades, ilusões e máscaras?  Nossas agendas, muitas vezes, têm compromissos com pessoas sem compromissos com a vida. Seria bom pensarmos sobre isto e revermos os espaços cheios de nossas agendas. Quem sabe nesta arrumação, não sobre tempo para salvarmos algumas estrelas-do-mar?

No desastre ocorrido em Mariana, num cenário de completa destruição, uma imagem emocionante: um Bombeiro, sozinho, consegue salvar um cachorro que tinha ficado preso à lama. O cachorro, vivo, olha para aquele Bombeiro com um olhar expressivo de gratidão: para aquele cachorro, o Bombeiro fez a diferença. Quantos mais cachorros tinham ali? Infelizmente não sabemos. Mas o que sabemos é que aquele cachorro foi salvo porque aquele Bombeiro, certamente, acredita em devolver estrelas-do-mar ao oceano.

Precisamos de mais salvadores de estrelas-do-mar.

Salvar uma estrela-do-mar significa fazer o que realmente importa na vida. Significa fazer a diferença para o bem, mesmo que seja apenas para uma pessoa, para um cachorro, para uma estrela.

Deixar de fazer a diferença devido ao excesso, ao volume, à quantidade é se colocar na linha da mediocridade da vida. Nunca poderemos fazer tudo, abarcarmos tudo, dar conta de tudo. Então não se faz, é isto?

Uma hora eu faço. Uma hora eu vejo. Uma hora eu ligo.

Amanhã eu faço. Amanhã eu vejo. Amanhã eu ligo.

Qualquer dia eu faço. Qualquer dia eu vejo. Qualquer dia eu ligo.

Uma hora, Amanhã, Qualquer dia...estão aí termos ausentes na vida de quem lança e devolve estrelas-do-mar para o oceano. A hora de fazer a diferença é agora e não depois.

Oportunidades são bem-vindas se não forem perdidas por mãos de quem não salva estrelas-do-mar.

Aquele escritor enxergou, no ato daquele menino, um trabalho desnecessário, cansativo, sem valor e o pior: como se o ato do menino fosse em vão. Nada, absolutamente nada é em vão quando se faz e se realiza o que importa.

E se mesmo depois de ler esta história você achar que não tem condições, sozinho, de devolver as estrelas para o oceano, busque vozes e braços que ecoem deste mesmo sonho. E certamente mais estrelas-do-mar voltarão para o oceano.

Como diz Cora Coralina, uma das grandes poetisas do século XIX:

“Removi pedras do meu caminho e no lugar delas, plantei flores. ” Seria o mesmo que dizer que ela lançou e devolveu, ao oceano, muitas estrelas-do-mar.

Certamente aquele menino, mesmo com sua pouca idade, colocava em prática o pensamento de Cora Coralina: removeu pedras e plantou flores ao salvar muitas estrelas-do-mar.

Portanto, refaço a pergunta: você salvou alguma estrela-do-mar hoje? Se não, ainda dá tempo. Elas estão por toda parte...

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Muito mais que um minuto

Ironicamente, sexta-feira passada foi o dia internacional da gentileza. Mas o que é isto mesmo? Acho que esquecemos.

Mesmo se buscarmos o significado desta palavra no dicionário para avivarmos a nossa memória, de nada adiantará. Não vamos usá-la, não é mesmo? Então por que perdermos tempo em recorrermos ao dicionário? Deixa a palavra lá, guardada no papel, quieta.

Enquanto a inflexibilidade e a dureza de nossos corações ditarem as regras do nosso viver, a gentileza não terá vez. A gentileza é incompatível com a inflexibilidade. E como a inflexibilidade tem sido muito bem alimentada por nós, por todos nós, isto explica o motivo de tanto sucesso.

A palavra gentileza deriva do Latim gentilis, que significa, entre outras coisas, bem tratar os outros. E tratar bem os outros foi algo que não vimos na sexta-feira passada.

O que aconteceu com o povo francês foi mais uma das barbaridades que evidencia, há tempos, a nossa mediocridade, o colapso no qual vivemos, a nossa pequenez. Desculpe a franqueza: mas somos medíocres. Se assim não fôssemos, não aceitaríamos este lugar pequeno que nos colocamos. Este lugar no qual a elevação moral não cabe, mas nos faz falta. Este lugar cuja vaidade, poder e estatus têm lugar de destaque. Este lugar cuja elevação moral, amor e perdão perdem força e são ridicularizados à medida que o poder ganha mais um holofote.

O dia mundial da gentileza existe para nos mostrar a importância deste sentimento. Quem não é gentil, quem sofre por não carregar gentileza dentro de si também sofre de inflexibilidade, de intolerância e de intransigência. E o que somos? E o que foi isto que aconteceu?

A França somos todos nós. O que aconteceu lá poderia ter acontecido em qualquer País, com qualquer povo.

Pouco ou quase nenhum uso fazemos da gentileza. Raríssimas são as exceções. Enferrujou por falta de utilização ou enferrujou porque não estamos encontrando um sentido para utilizá-la?

Recentemente, assistindo a um programa de televisão sobre reciclagem do lixo, uma destas pessoas que fazem a reciclagem ouviu certa vez de uma outra pessoa:

- “Que chato, você é uma catadora de lixo...”... E ela respondeu:

- “Não, não sou uma catadora de lixo...Sou uma recicladora do lixo que você produziu...”

Acho que uma das causas da guerra e, consequentemente, da falta de gentileza, é esta: não nos apropriamos do problema. O lixeiro passa na rua para recolher o nosso lixo, mas a gente buzina para ele ou para o carro ao lado. Queremos ultrapassar. Agimos como se o nosso tempo fosse mais importante. Mas afinal: por que é, mesmo, que o lixeiro está lá? Ah, sim, lembrei: para recolher o lixo que nós produzimos.

Não temos paciência para aguardar o lixeiro passar, não somos gentis e respeitosos com quem carrega e retira o nosso lixo, como exigir tolerância frente à diferença de religiões, diferentes ideias? A inflexibilidade e a dureza dos nossos corações criam uma casca em nós. Estamos endurecidos. Estamos doentes. E há tempos.

Ainda temos a mentalidade de garantir o nosso. E o outro? O outro que se vire. Nosso mundo adoeceu. E faz tempo. E talvez estejamos tão ocupados fazendo coisas desnecessárias, que não percebemos isso. A doença se instalou e o remédio para isto está sendo bem amargo.

A nossa mediocridade está por toda parte. E acho que este é o problema, pelo menos um deles. A dificuldade do nosso semelhante ainda não é vista como a nossa dificuldade, também. Quando não enxergamos a dificuldade do outro como nossa é como se vivêssemos em mundos diferentes.

Lindas foram e têm sido as homenagens feitas às pessoas da França, mas infelizmente isto não as trarão de volta, nem tampouco mudarão os planos das mentes doentes que criaram esta triste situação.

A guerra está instalada. E há tempos. Ela está por toda parte, no mundo todo. E é preciso acabar com ela. Enquanto o mundo estiver em guerra, nós estaremos em guerra. Ontem foi a França. E amanhã, quem será?

A guerra está na dor dos imigrantes que fogem em busca de uma vida digna e decente. Os imigrantes não querem participar desta guerra. Por isso, foram obrigados a deixarem suas casas e tudo o que construíram em busca de uma possível sobrevivência. Alguns países construíram cercas elétricas em suas fronteiras para evitarem a passagem de mais imigrantes. A guerra é isto. Quando damos as costas para quem nos pede ajuda e socorro, se instala a guerra. E se nós fôssemos os estrangeiros? Será que tentaríamos pular a cerca?

A guerra está no rompimento das barragens, na cidade de Mariana, que causou um dos maiores desastres ambientais do mundo. O desastre ecológico não tem precedente. Muitas espécies de peixes estão sujeitas à extinção devido à falta de oxigênio da água. Uma comunidade inteira foi destruída e todos os que sobreviveram foram obrigados a deixarem tudo para trás. E agora aguardam reparos (se é que são possíveis) para danos irreparáveis como a dor emocional de olhar para a sua terra e vê-la completamente destruída. Isto é a guerra. O Ministério Público, na época, não deu aval para este contrato, e ainda recomendou à Empresa que fizesse um laudo porque via problemas e irregularidades no local. Além de o Ministério Público não ter sido ouvido, foi ainda chamado de burocrático, conservador e contrário à evolução. E o que é isto senão a guerra?

Um senhor de pouco mais de 60 anos e várias pessoas, além do Corpo de Bombeiros e do IBAMA estão tirando, da água do Rio Doce, da região de Mariana, espécies de peixes e os conservando em cativeiro para protegê-los de uma triste extinção. Mesmo arrasados com tudo o que aconteceu, ainda conseguiram unir forças para salvarem parte das espécies do Rio. Apelidaram o projeto de “Arca de Noé”.

E ainda temos de ouvir alguns poucos jovens arrogantes dizerem que vão salvar o mundo que as gerações atuais estão destruindo. Deveríamos ser todos um. É preciso lembrar que um dos principais terroristas tinha 27 anos, apenas! Mas foi o senhor de 60 que pensou na proteção dos peixes. Somos todos um: assim deveria ser. A idade e a geração? Pouco importam.

Guerras silenciosas. Guerras barulhentas. Guerras externas. Guerras internas. Não importa a natureza: são guerras. E a guerra não deveria existir.

A guerra sempre nos dá a sensação de termos chegado tarde. Bem tarde. Sempre tarde. As pequenas guerras anunciadas. Os conflitos preeminentes. Os recados dados e não ouvidos.

De quem é a culpa? De todos nós, de todos aqueles que acreditam na guerra. De todos aqueles que fazem a guerra. Seja aqui, seja na França, seja ao redor do mundo.

Precisamos de muito mais do que um minuto de silêncio. Muito mais. Muitos atletas dedicaram um minuto em prol da França. Fizemos reflexões e nos chocamos diante o que aconteceu. Mas passado o minuto de silêncio, a corrida de Fórmula 1 começou, o jogo de basquete teve início, a bola rolou no estádio de futebol e nós, simples mortais, voltamos para as nossas rotinas. Mas e depois do minuto de silêncio? O que mais podemos fazer?

Temos muito discurso e pouca ação. Este minuto de silêncio deveria servir, além da homenagem póstuma, como uma antecipação. O que está acontecendo no mundo que já deveríamos saber? Será que os avisos não tinham sido dados? Será que fomos avisados, mas não percebemos? É preciso saber e se antecipar aos explosivos colocados no nosso caminho. Sabemos que eles existem. Mas aonde eles estão?

Ontem a Presidente do nosso País disse que é preciso tomar cuidado com o terrorismo. Mas o que, efetivamente, isto quer dizer? Como tomar cuidado? Como prevenir-se? Discurso vazio é um convite para as guerras. Está aí um exemplo de um discurso vazio.

Alguém precisa erguer o braço e hastear a bandeira branca. Mas e a vergonha de pedir paz? Vivemos num mundo invertido, no qual pedir e promover a paz são sinais de fraqueza. Lutar e guerrear são sinônimos de força.

Penso que a força está justamente na paz que promovemos. A fraqueza está no tumulto e na guerra que criamos em prol de ideais doentes. Adoecemos. Medir forças com o inimigo é dar munição a ele. Não estamos lutando de igual para igual. Se pararmos de medir forças com ele e buscarmos a paz como caminho, o inimigo será desestabilizado. Mas quem começa?

A guerra traz como inimigo principal a gente mesmo. Criamos este mundo doente. E agora não adianta marcar uma consulta. Tarde demais. O que aconteceu na França é um exemplo deste chegar tarde demais.

A guerra está nas comunidades carentes que vivem acordando com disparos entre policiais e bandidos. E as crianças? Ficarão em casa, terão suas aulas interrompidas mais uma vez. Isto é uma guerra.

Precisamos nos antecipar. Perceber e ouvir os recados. Mas como chegar antes se ainda temos dificuldades de doarmos o que temos em excesso? O excesso nos representa e nos diferencia de quem vive na privação. O excesso cega. A privação adoece.

Drogas. Trabalho escravo infantil, prostituição, descaso, pessoas morrendo em corredores de hospitais por falta de assistência. Péssimo atendimento em diversos órgãos e em diversas instâncias. Convênios médicos falidos por corrupção. Ética fora da agenda. Isto é a guerra.

Guerras no trânsito. Veículos como armas em mãos dos desavisados.

O nosso mundo chora. Os animais estão morrendo. Muitos já morreram. A natureza dá sinais de fúria e de revolta. O Rio Doce agora chora também.

É preciso um sentimento de unidade, unicidade, pertencimento. Apropriar-se.

Poderíamos estar em festa se não fosse a nossa escolha pela guerra. Escolhemos este caminho. Só estamos colhendo os frutos de nossa própria plantação.

Ainda parece que não nos cansamos de sofrer. Se estivéssemos cansados, escolheríamos outros caminhos. Se ainda optamos pela guerra, é porque, infelizmente, o sofrimento ainda faz sentido. De forma insana e torta, mas ainda faz sentido.

Quero finalizar este texto, mas não a reflexão, com um verso da música Baianidade Nagô:

“...quem sabe um dia a paz vence a guerra, e viver será só festejar...”

Que a gente possa espanar o nosso dicionário e dar vida à gentileza. E quem sabe um dia a guerra se torne uma coisa remota, de um passado bem distante. Só depende da gente.

terça-feira, 10 de novembro de 2015

Obrigada, amigo!

A semana que passou foi muito triste para mim. Particularmente muito triste. Perdi um amigo.

Um amigo todo branquinho, peludo, da raça poodle, que não pesava mais que três quilos e meio. Chamava-se Barthy. Ou melhor, chama-se Barthy. Aprendi que utilizar o tempo verbal no presente eterniza sobre o que se fala e/ou sobre quem se fala. E o Barthy estará sempre nas nossas memórias, sempre presente em nossas vidas.

Um amigo cão.

Barthy foi um cão feliz. Literalmente posso dizer que ele teve uma vida de cachorro. No melhor sentido que esta construção possa ter. Sempre teve amor da família, atenção, alimentação, caminha confortável e, principalmente, respeito. Ele nos amava e nós o amávamos. Sei disto.

Ele se foi de velhice. Viveu quase 16 anos. Faria aniversário em 14 de dezembro. Nunca teve problemas de saúde, nunca precisou tomar remédios na vida. Um cachorro saudável que viveu a totalidade de tempo que sua raça e espécie permitiram. E sem dores e sem sofrimentos. Apenas nestes últimos quinze dias ele começou a apresentar problemas na lombar, sua circulação foi dando sinais de cansaço, e ele se foi da forma mais linda que pode haver: nos braços de quem o amava muito, também: minha irmã, a mãe dele.

Até nesse momento triste de despedida, ele não deu trabalho. Foi embora de forma rápida e indolor. Mas sei e acredito que a despedida foi temporária: Barthy vive. Não aqui, mais. Mas num outro lugar, num outro plano aonde ele possa descansar e continuar brincando. Acredito nisto. E que bom que acredito nisto. As nossas crenças nos determinam.

Fica a saudade. E quanta saudade! Cheguei a ouvir o latido dele durante a semana, acho que de tanta saudade que sinto. A última vez que nos vimos, há poucas semanas, fiquei um tempão com ele no colo. Como era o costume! Ele adorava um colo. Num momento, ele apoiou sua cabeça no meu pescoço e pude sentir o seu focinho, sua respiração. Só para quem ama animais pode imaginar o sabor delicioso desta sensação. E depois, o levei para tomar água e comer um pedacinho de tomate, que ele fez com gosto. E ainda lambeu meus dedos e minhas mãos.

Que gostosa esta convivência! Obrigada, amigo. E que conforto que dá saber que você foi um cão feliz! E que viveu a plenitude da sua vida. Obrigada, amigo! Obrigada por ter trazido somente alegrias para as nossas vidas.

Como um bom sagitariano, uma de suas principais características era a sinceridade. Quando ele não gostava de alguma coisa ou de alguém, era visível. Latia, rosnava, resmungava. Ficava bastante inquieto quando algo o incomodava. E quer saber? Na maior parte das vezes ele estava certo: ele sempre latia para pessoas esquisitas, que não gostavam de animais e que tinham uma energia pesada.

Respeito quem não gosta de animais. Cada um com suas escolhas. Mas não sei se são pessoas boas e confiáveis. Desculpe se ofendo alguém. Mas somos livres para expressarmos as nossas opiniões. Penso que quem não gosta de animais é só porque ainda não teve a oportunidade de conviver com eles. Depois da convivência, duvido resistir a um chamado deles.

Como diz a música “Samba da minha Terra”, de Dorival Caymmi: “Quem não gosta do samba bom sujeito não é...ou é ruim da cabeça ou doente do pé...”, parafraseando esta bela música...”...quem não gosta de animais bom sujeito não é...ou é ruim da cabeça ou doente do pé...”. Além disto, a convivência com animais nos faz pessoas melhores. Acredito nisto também.

Quando minha irmã viajava, o deixava conosco, em casa. Minha mãe cuidava dele. E que delícia era chegar à noite, em casa, e saber que ele estava lá. Quando eu saía do elevador e tocava a campainha, lá vinha ele com o seu focinho redondinho embaixo da porta, cheirando, só esperando que eu entrasse. E quando isto acontecia, ele ficava pulando em mim pedindo para pegá-lo no colo. E que dificuldade era pegá-lo no colo! Era o que mais eu adorava fazer: ficar com ele no colo.

Numa das vezes em que ele estava conosco, cheguei do trabalho muito triste. Tinha tido um dia muito difícil. Cheguei muito cansada, brinquei pouco com ele e fui tomar um banho. Depois jantei e me sentei no sofá para tentar descansar um pouco. Realmente naquele dia eu não conseguia me doar mais, estava muito cansada. Liguei a televisão, me sentei no sofá e só senti um focinho molhado encostando na minha mão. Era o Barthy. Olhei para ele. Ele levantou a cabeça e olhou para mim, também. Como que entendendo o que acontecia, e sem nada me cobrar, abaixou a cabeça dele e só ficou ali ao meu lado, sem me pedir e sem me cobrar absolutamente nada. Nunca vou me esquecer desta demonstração de carinho, de amor e de solidariedade, algo raro em nós, humanos. São poucos os que fazem, de verdade, isto. Nada me pediu em troca. Muito pelo contrário: foi ele quem me fortaleceu. E ficamos os dois ali, assistindo televisão, quietos, juntos. Não era necessário dizer algo. O silêncio, muitas vezes, fala por si. Mas é preciso saber ouvi-lo.

Aprendemos muito com eles, não só com os cães, mas com todos os animais. São sábios, simples e sabem olhar para a vida além do que ela mostra. Sabem olhá-la com os olhos do coração e para o que realmente importa. Respeitam a vida e só atacam a nós quando nós o atacamos em primeiro lugar. Só que é preciso lembrar que se eles nos atacam será por pura defesa e instinto. Não são vaidosos, não querem o poder, não puxam o tapete de ninguém. São amigos sinceros e solidários. Respeitam a natureza. Respeitam a si.

Quanto podemos aprender com eles, animais!

Nestes últimos dias em que o Barthy esteve debilitado, minha irmã precisou se ausentar do trabalho. Não havia como deixá-lo sozinho. Ela é Professora. Conversando com a Coordenadora de Ensino sobre a situação e pedindo um pouco de compreensão, recebeu a seguinte resposta:

“Você vai precisar escolher. Ou você fica com o seu cão ou você escolhe o seu profissionalismo. Deixar de trabalhar por causa de um cachorro? ”

Pessoas infelizes não são dignas de críticas, mas sim de piedade. Acho que este raciocínio se encaixa bem a esta pessoa. Há pessoas no mundo que congelam em função da frieza delas. Mas não percebem em função de suas duras cascas. Só mesmo os tropeços da vida serão capazes de mudar a rota destas pessoas.

É inquestionável a necessidade do trabalho. Mas aqui se fala de algo além, extremamente superior, e sem comparação: solidariedade, compreensão, estender as mãos, caridade. Mas como pedir isto a este tipo de pessoa?

Nem preciso dizer a escolha de minha irmã: o Barthy. E ela arcou com todas as consequências de sua escolha, de sua feliz e acertada escolha. Num mundo em que se abandonam pessoas, como reparar em quem tem este tipo de atitude perante a um cachorro, a um animal? Tento encontrar outra palavra, mas acho que piedade é a que melhor se encaixa, mesmo. São pessoas dignas de piedade. E, independentemente, de nossas crenças religiosas e se é que temos alguma, achar que não há reação para as nossas ações, é pura ilusão. É viver no mundo encantado. Tudo o que fazemos e tudo o que não fazemos sofrerá reações, efeitos. Seja para o bem ou para o mal. Portanto, é preciso que saibamos que todos nós prestaremos contas de todas as portas que fechamos às pessoas que nela bateram. E o inverso também é verdadeiro: que não serão em vão as portas que abrimos a quem tocou a nossa campainha. Isto é um fato, independentemente de quem acreditar ou não. Quem não acreditar nisto, só estará exercitando o seu poder de alienação, coisa muito comum e nossa parceira diária.

As nossas escolhas são as direcionadoras de nossas vidas. É preciso saber escolher. Escolhas bem-feitas, vida feliz; escolhas malfeitas, vida infeliz. Quem é feliz, olhe para as suas escolhas: você encontrará uma resposta do motivo de sua felicidade. Quem é infeliz, olhe para as suas escolhas: você encontrará uma resposta do motivo de sua infelicidade. Isto é a nossa vida. Somos estas duas coisas. Mas nem todos dedicam tempo para acertarem as rotas. E quando se derem conta, será preciso refazer o caminho. E refazer o caminho não me parece uma coisa agradável. Cada um de nós deve ter uma história para contar sobre isto.

Enfim, quero encerrar este texto que escrevi para homenagear o meu amigo Barthy com um “Muito Obrigado, amigo! ”, e também deixar duas reflexões para todos nós:

“A grandeza de uma nação pode ser medida pela maneira como seus animais são tratados. ” - Mahatma Gandhi

“Compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e pode ser seguramente afirmado que quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem. ” - Arthur Schopenhauer

O que falar sobre Gandhi? A obra dele fala por si. Mas há uma coisa que não posso deixar de falar: que Gandhi lutou pela transformação do mundo, para que fosse um lugar melhor de ser vivido. Ele foi o maior defensor do princípio da não agressão e da não violência. Só isto ele buscou.

E sobre Arthur Schopenhauer, o que dizer? Também a obra dele fala por si. Como um dos grandes Filósofos da História, tinha como uma de suas metas de vida, o Amor.

Acho que vou apresentar Gandhi e Schopenhauer àquela pessoa que se diz Coordenadora de Ensino. E que tristeza uma pessoa com estes pensamentos atuar na área da Educação. Em qualquer área isto seria crítico. Mas na área da Educação, é preciso concordar que é, no mínimo, irônico.

Mas é preciso descongelar a alma e o coração para entender as palavras de Gandhi e de Schopenhauer.

O convite para este descongelar nos chega diariamente. Mas às vezes, muitos de nós estamos ocupados com coisas desnecessárias para ouvirmos a este chamado. E acho que este é o caso daquela pessoa. Mas a vida ensina. À maneira dela, mas ela ensina. Lembrando que a vida não costuma ser muito gentil em seus ensinamentos para quem escolhe caminhos tortos. Mas isto é assunto para outro texto!

Mais uma vez: Obrigada, amigo!

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

O que aprendi com a vida

Que mais aprendo do que ensino.

Que nem sempre minha voz é ouvida. Mas isto não quer dizer que devo ficar calada.

Que por mais que eu me esforce, nem sempre o meu esforço é recompensado.

Que por mais que eu mereça, nem sempre a vida é justa, no meu ponto de vista.

Que eu devo mais ouvir do que falar.

Que ceder o meu lugar é mais que uma boa ação: é minha obrigação.

Que ficar falando sobre mim é ineficiente. Minhas atitudes devem dizer quem sou. Não será necessário falar sobre, a menos que me perguntem.

Que aquele que nada faz por merecer, ganha um grande prêmio. E que, mesmo contrariada, é de bom tom apertar a mão desta pessoa e parabenizá-la.

Que colocar os meus defeitos embaixo do tapete aumenta o tamanho deles.

Que deixar minha obra no mundo não significa que vão reconhecê-la.

Que eu recebo muitas coisas da vida, muitas vezes sem muito esforço aparente. Simplesmente recebo porque mereço. Em algum momento construí este caminho. Simples assim. Aprendi que é preciso aceitar os presentes da vida e me sentir merecedora deles. Se me forem dados, foi porque os mereci.

Que a tristeza faz parte da vida. Eu querendo ou não. Se eu a aceitar e procurar compreender porque ela me visitou, certamente ela irá embora mais cedo.

Que embora o tempo esteja chuvoso, o sol está presente. Apenas não está aparente. Mas ele está lá. Basta procurá-lo.

A vida me ensinou o perigo da subjetividade. E por causa dela, presenciei, presencio e presenciarei muitas injustiças.

A vida me ensinou a dura arte de aprender a lidar com os falsos, com os políticos, com os hipócritas. E o pior: a necessidade de sorrir para eles quando eu quero desmascará-los. A vida os utiliza para me ensinar a dura arte de perseverar: a de não desistir de acreditar no que é certo e, principalmente, no poder de transformação das pessoas.

A vida me ensinou que conviver com hipócritas não me faz um deles. Ensinou-me a ter firmeza no meu querer e saber quais caminhos eu não trilharei na vida.

A vida me ensinou a gratidão pelas pessoas idôneas e honestas com as quais também convivi. E o quão difícil e prazeroso é me manter neste caminho.

Aprendi que a vida não facilita o meu caminhar, a menos que eu permita que ela me ajude.

A vida me ensinou que nem sempre ela me dá aquilo que eu quero, mas sim o que eu preciso. E como é duro este aprendizado. Mas de verdade? Se eu facilitar o caminho, ela também facilitará para mim.

Aprendi que não adianta medir forças com quem é mais forte do que eu.

A vida me ensinou a observar a água: ao encontrar uma pedra pela frente, simplesmente ela contorna a pedra. Ela sabe que o seu objetivo é o rio, o mar. E aquela pedra? Nada além de alguém tentando desviá-la do caminho. Mas a água, sabiamente, não permite.

Aprendi com a vida que querer sempre ter razão é arrogante e improdutivo. Não sairei do lugar com este proceder. Além do mais, a minha vaidade fica muito evidente e isto é vergonhoso.

A vida me ensinou a não ir contra a natureza. É inútil. Mas é preciso saber isto e aprender a conviver com o que eu não gosto.

Aprendi com a vida que não adianta ficar brava com Deus (já fiquei algumas vezes). Ele sempre sabe o que faz. O problema é que ele só avisa depois. Bem depois. É preciso esperar e confiar.

Aprendi com a vida que os elogios sinceros são poucos. Mas mais que suficientes para o fortalecimento da minha vida e para o meu fortalecimento. Ela me ensinou que muitos elogios atiçam a minha vaidade e me fazem acreditar sem questionar. Poucos elogios me colocam numa posição de humildade, de gratidão e de reconhecimento de minhas raízes, de eterna busca. Muitos elogios me levam para caminhos sem volta. E quando me der conta, estarei perdida.

Ela me ensinou que o dinheiro é um meio, uma consequência, e não o fim em si. O dinheiro não encerra, promove. Não conclui, possibilita.

A vida me ensinou a pensar duas vezes antes de criticar a corrupção dos governantes, a menos quando eu esteja pronta para abrir mão de minhas pequenas corrupções.

A vida me ensinou que aprender não é sinônimo de apreender. São coisas muito diferentes. O difícil é colocar isto em prática.

A vida me ensinou que o óbvio para mim é absurdo para o outro. E vice-versa.

Ela me ensinou a não esconder os meus medos. Quanto mais os escondo, mais eles aparecem e evidenciam o meu rosto.

A vida me ensinou que os tropeços da minha vida são convites para eu continuar no caminho.

Aprendi com a vida que as minhas frustrações são testes para a minha vontade.

A vida me ensinou que as contrariedades são oportunidades de colocar minhas forças em prática e em serviço.

Ela me ensinou que problemas e dificuldades são formas encontradas por ela de me fazer redescobrir o meu sonhar.

A vida me ensinou a pedir licença para entrar, mas nunca deixar de entrar.

Ela me ensinou que falta de educação é muito triste. Mas que educação em excesso atrapalha.

A vida me ensinou que a grosseria de alguém comigo nem sempre é pessoal. Que na maioria das vezes, reflete, apenas, o que aquela pessoa traz por dentro.

Ela me ensinou que quando eu aponto o meu dedo para o outro, na verdade o defeito é meu, a limitação é minha de, no mínimo, não exercitar a minha compreensão.

A vida me ensinou que sempre posso dar o primeiro passo. E que posso transformar o caminho de muitas pessoas por meio do meu primeiro passo.

A vida me ensinou que ser corajosa custa caro. Mas que ser covarde custa mais ainda.

A vida me ensinou que me posicionar significa, muitas vezes, ficar sozinha no caminho.

A vida me ensinou que ser ética e ter bom senso são obrigações minhas e não méritos de minha personalidade.

A vida me ensinou que, quase sempre, aquele que tem o poder está errado. E aquele que dá o poder ao outro e estimula o servir por meio do poder, está sempre certo.

A vida me ensinou que amigos, de verdade, são poucos. E que quem disser que tem muitos amigos, na verdade não tem nenhum.

A vida me ensinou que ser honesta nem sempre é valorizado.

A vida me ensinou que o conhecimento é um valor inestimável para aqueles que, verdadeiramente, sabem o seu valor.

A vida me ensinou quem nem sempre aquilo que eu acho importante e justo tem voz.

Aprendizados: fáceis, difíceis, necessários, atemporais. Se soubermos lidar com tudo isto, só sairemos melhores desta experiência. Disto não podemos duvidar.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de uma pessoa pouco conhecida, e de uma sabedoria incalculável, que diz:

“A vida é maravilhosa se não se tem medo dela”. Charles Chaplin

Se persistirmos no medo de vivermos as nossas vidas, os ensinamentos ficarão a nossa espera, à espera de quem dê ouvidos a eles.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A cegueira moral

A situação se dá em Praga, a capital da República Tcheca, início do século XX, numa exposição de pintores. Um jovem poeta tcheco chamado Gustav Janouch comentou com Franz Kafka:

-  Picasso distorce, deliberadamente, as formas. Criticou o rapaz.

Em resposta a ele, Kafka, um dos escritores mais influentes do século XX, respondeu:

- Picasso, o grande pintor espanhol, apenas registrava “as deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”.

Se eu fosse aquele jovem rapaz tcheco, Gustav Janouch, abriria um buraco ali mesmo e me enterrava. Perdeu uma excelente oportunidade de se calar. Mas ganhou uma excelente oportunidade de aprender. Mesmo que às duras penas.


imagem tirada da internet

Nem sempre, na vida, o aprendizado vem pelo amor. Que saibamos reconhecer isto.

Observando este diálogo entre eles, atual e atemporal, fiquei pensando na nossa verdadeira cegueira: aquela que obscurece o nosso olhar frente às verdades da vida, frente ao que verdadeiramente importa. Não falo da cegueira física, esta que, infelizmente, acomete algumas pessoas. Falo da cegueira moral que nos impede de sermos pessoas melhores, mais éticas e justas. Esta cegueira que nos faz olhar apenas para os nossos pés, para o caminho que caminhamos. Esta cegueira que somente nos faz reconhecer os nossos passos e o quão eles são imprescindíveis, na nossa opinião. Será?

Gustav Janouch ao criticar a forma como desenhava e criava Picasso demonstra esta cegueira.

Temos o direito de não gostar de algo, de criticar, mesmo esta crítica sendo referida a Picasso. Mas não temos o direito de sermos arrogantes, cegos e vaidosos. Isto não.

Criticar e dizer que não gostou é exercer o nosso direito à democracia. É exercer o nosso direito enquanto cidadãos que somos. Mas a crítica, pela crítica, pela pura vaidade, apenas demonstra o imenso tamanho da nossa pequenez, o imenso tamanho da nossa arrogância e da nossa desproporcionalidade diante à grandiosidade do mundo e de suas obras. No caso, aqui, Picasso: um dos gênios que a Humanidade teve.

É preciso saber e reconhecer o limite entre o que é crítica, como direito de protestar, de ser contrário ao mostrado, ao proposto, e o que é crítica baseada na arrogância, na vaidade, na prepotência que apenas mostra o quão longe estamos.

Esta cegueira é a verdadeira que cega. Infelizmente.

As distorções das formas, tão genialmente pintadas por Picasso, acho que foram criadas para aquele jovem poeta. E para todos nós, também.  Apenas ainda não estamos conscientes sobre isto.

Ouvi, certa vez, um palestrante dizer: ”o problema do nosso ponto de vista é que ele cega a nossa vista”. Perfeito. Aquele jovem poeta não ouviu este palestrante dizer isto, mas ele estava acompanhado de um mestre, Franz Kafka, que soube colocá-lo no seu devido lugar ao dizer: “...deformidades que ainda não penetraram em nossa consciência”.

O problema é sempre o mesmo: falta de autoconhecimento. Como não nos conhecemos, este mesmo desconhecimento nos faz crer que nos conhecemos. E aí começa todo o problema: aquele que acha que se conhece torna-se arrogante, prepotente, vaidoso. Nunca poderemos dizer que nos conhecemos. No máximo que temos certas pistas, um “cheiro”, mas a verdade é que estamos em constante processo de autodescoberta, de autoconhecimento. Saber isto nos fará pensar duas vezes antes de criticar uma obra de Picasso e demais coisas que se apresentarem no nosso caminho.

A arrogância, a vaidade e a prepotência são inimigas do conhecimento, da humildade. No fundo, no fundo, elas são um espelho de nossos medos escondidos embaixo de nossos tapetes felpudos e aconchegantes.

A vaidade demonstra a ociosidade e os vazios presentes em nós. É um literal abandono do bom senso.

A arrogância nos torna capazes de exigir o que não temos direito, o que não merecemos. Aquele jovem poeta, ao criticar, cegamente, a obra de Picasso, exigia um reconhecimento como “conhecedor da obra” que ele não tinha, e que jamais viria a ter. Pelo menos não enquanto durasse a cegueira dele.

O que motiva a arrogância, a cegueira, a prepotência é o sentimento de pequenez mental. Este é o sentimento que movimenta o arrogante. Mas claro que ele não sabe disto: ele está cego!

É preciso ser merecedor da obra, do reconhecimento. E isto é para poucos. Porque são poucos os que, verdadeiramente, enxergam.

Aquele que acha que sabe, como aquele poeta, é o que menos sabe. Quando achamos que sabemos as respostas, a vida muda as perguntas, já dizia o escritor. É bom estar atento.

A crítica é sempre bem-vinda, sempre será. Crescemos por meio dela. Mas a crítica, independentemente, a qual obra ou fato esteja se referindo, deve estar acompanhada de respeito e de humildade. O que certamente faltou a aquele poeta.

O que me chamou a atenção, também, foi que ele era um poeta. E o verdadeiro poeta tem humildade e sensibilidade. Sem isto não há como ser um verdadeiro poeta, talvez um pseudopoeta, nada mais que isto.

Julgamo-nos superiores a coisas cuja importância desconhecemos. Perdemos excelentes oportunidades de aprendermos, de avançarmos.

A futilidade que sustenta muitas de nossas ações nos faz escorregar diante o nosso próximo. E isto nos envergonha. Mas como não somos capazes de sustentar a nossa vergonha e de aprendermos com ela, buscamos defeitos na obra alheia, nas pessoas, nas coisas, enfim em tudo aquilo que tire a atenção da gente.

Somente ostenta quem não tem, verdadeiramente. Aquele jovem poeta, ao querer diminuir a obra de Picasso e “mostrar” que sabia, somente colocou mais luz na invisibilidade e na insignificância dele, nas pequenezas dele. Quanto mais ostentamos, mais mostramos que não temos. Quem tem, de verdade, não precisa mostrar. O que ele produz fala por si. A obra produzida, se bem produzida, fala pelo escultor.

Aprendemos com quem chegou antes, com quem chegou depois. Aprenderemos com quem ainda nem chegou. E muita gente aprenderá conosco quando nem aqui mais estivermos.

Aprendemos com a obra de Picasso, com a genialidade dele, mas também aprendemos com aquele que talvez não seja o Picasso, mas que possui genialidade, tanto quanto. Mas para isto é preciso que se enxergue com a alma e com o coração.

A falta de humildade, a ostentação, a arrogância, a prepotência nos levam para caminhos sem volta. São traiçoeiras. Elas nos fazem acreditar que somos o máximo, quando, na verdade, só nos expõem ao ridículo, e acendem todas as luzes sobre os nossos defeitos e fraquezas. Elas se unem para esconderem as nossas fortalezas. Definitivamente, não são boas companheiras. Mas elas são ótimas em nos fazerem ver as distorções das formas pintadas por Picasso.

Haja cegueira moral! Como é triste não termos consciência disto. Deixamos de apreciar uma obra, no caso a de Picasso, por conta de não a enxergarmos.

Uma doença da alma, fruto da ignorância. Demonstra a obscuridade que aponta aquilo de misterioso, encoberto e adormecido que há em todos nós.

Finalizo o texto, mas não a reflexão, com uma frase de Clarice Lispector, uma das maiores escritoras da literatura mundial que, certamente, enxergava muitíssimo bem. Suas obras não deixam dúvidas.

“A pior cegueira é a dos que não sabem que estão cegos. ”

Pois é, ainda bem que Picasso não deu ouvidos àquele jovem poeta.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

O arco-íris não vai te esperar

Duas senhoras caminhavam pela rua quando uma delas viu um homem pedindo uma ajuda. Como fazia frio, uma delas resolveu doar o casaco que vestia, imaginando ser esta a melhor forma de ajudá-lo, em função da baixa temperatura.

Observando isto, a outra senhora disse:

- Espere. Vai doar este casaco caro e que você acabou de comprar? Vamos para casa e lá pegaremos outra blusa ou casaco velho, ou até mesmo um cobertor usado, e traremos para ele, aqui.

A outra senhora concordou. E as duas partiram rapidamente para casa. Ao voltarem com o casaco, o homem não se encontrava mais lá. As duas, devidamente vestidas com seus casacos, agora com um a mais, ficaram paradas na calçada, como se isto fosse o suficiente para que aquele homem voltasse. Mas ele não voltou.

Podemos fazer várias leituras sobre esta pequena história. Mas o traço de conversa que quero puxar aqui é sobre as oportunidades de fazermos algo relevante nesta vida, mas que deixamos passar em nome de coisas irrelevantes. Deixamos para amanhã coisas que talvez não sejam mais necessárias, solicitadas, permitidas.  Deixamos para amanhã coisas que fazem sentido serem feitas hoje. É preciso pensar sobre.

Isto não quer dizer que devemos abrir mão da ordem, do planejamento. Isso sempre será necessário e útil para a eficiência de qualquer atitude, compromisso, mudança. O planejamento é fundamental, mas exercer a arte do fazer é crucial para a nossa vida. “Sair fazendo”, definitivamente, não é a melhor opção. Mas esperar demais ou querer que a situação esteja “perfeita” para começar a agir, também não será uma boa opção.

E talvez este tenha sido o erro das duas senhoras. Ficaram tempo demais no planejamento. E quando voltaram, era tarde demais. Sempre há algo para se fazer no momento, na oportunidade. E depois, com mais tempo e calma, efetuar o planejamento. Mas jamais perder a oportunidade. Na cabeça delas, tudo estava planejado: “...vamos para casa, pegamos outras peças de roupas, mais velhas, e voltamos e doamos a ele...”. Simples, não? Pois é, só que elas se esqueceram do principal: de considerarem aquele homem nas etapas planejadas. E quando voltaram, o homem não se encontrava lá. De que adiantou o planejamento? Nada. Planejamento sem ação é um vazio de significados.

Agora é a hora de fazer. Agora é a hora de pensar. Agora é a hora de agir. Agora é a hora de estudar. Agora é a hora do agora. Agora é a hora. A hora é agora. E o significado de agora é “nesta hora”. Portanto, lembre-se: o arco-íris não vai te esperar.

imagem tirada da internet

Aquelas duas senhoras, apesar de terem em mente ajudarem aquele homem, excederam no tempo, passaram do ponto, e perderam a chance de ajudar. Elas queriam fazer uma doação, ajudá-lo, mas desde que a doação fizesse parte dos excessos delas, do supérfluo, e não de algo realmente que importasse a elas.

Aquela blusa a mais nas mãos de uma delas denuncia os excessos, seja de planejamento, seja de atitude. É preciso abrir mão dos excessos, do supérfluo, daquilo que nos aliena do mundo.

Os excessos e o supérfluo nos encastelam. São redomas de vidro criadas por nós próprios. Assim como as privações também têm a mesma força. Eles não podem ser os nossos orientadores, os nossos direcionadores. Caso sejam, ainda ficaremos com muitas blusas nas mãos e deixaremos de ver muitos arcos-íris.

Aproveitar as oportunidades e saber a hora de realizar é saber enxergar o arco-íris. Nem sempre ele virá após uma chuva, mas se estivermos preparados quando ele passar, certamente o enxergaremos. No entanto, se estivermos muito mais preocupados com questões irrelevantes, como qual blusa vamos doar, certamente quando ele passar não estaremos na janela para vê-lo. E quando haverá outra oportunidade? Ninguém sabe. Assim como aquele homem que jamais voltou, na história das duas senhoras.  A oportunidade é agora. E só quem estiver pronto saberá.

Obviamente há que se preocupar com a chuva e saber aonde se abrigar. Ou seja: planejar. Mas o mais importante é saber o que fazer depois de a chuva passar. E tendo isto em mente, aguçaremos os nossos olhares para as oportunidades da vida.

Então, enquanto chover e estivermos aguardando a chegada do arco-íris, é bom sabermos...

- planejar, planejar e planejar. Seremos gratos a nós por isto. Mas não podemos nos esquecer de viver, também. Viver é tão importante quanto planejar;

- buscar o aperfeiçoamento de nossas atividades, e nunca a perfeição, uma vez que ela não existe. Buscar a perfeição é nos perder na nossa vaidade e na nossa arrogância. As imperfeições são bem-vindas;

- pedir desculpas hoje. Não sabemos se teremos outra oportunidade;

- ser feliz hoje. Não sabemos se teremos outra chance;

- valorizar a simplicidade, a honestidade, a lucidez, a humildade, a ética. Somente eles poderão nos mostrar o arco-íris. Sem eles, nem adianta aumentarmos a graduação de nossas lentes;

- abrir mão de ofender e de nos sentir ofendidos: quem ofende é pobre de espírito, e quem se sente o tempo todo ofendido é um vaidoso de plantão;

- construir a nossa base de valores naquilo que é sólido, e não naquilo que é efêmero. Os likes que o digam...;

- ousar desconstruir modelos que não servem mais. Trilhar caminhos não trilhados;

- construir nossa morada para o inverno. Mas não nos esquecer de termos tempo de apreciarmos o sol que bate em nossa janela;

- lembrar de que a racionalidade não pode tomar o lugar da sensibilidade. Quando isto acontece, há o embrutecimento da alma e a nossa sensibilidade se revolta;

- dar continuidade às coisas, mas não nos esquecer das possibilidades;

- lembrar de plantar, mas não nos esquecer de regar. O regar traz esperança;

- abrir mão de coisas que dificultarão enxergarmos o arco-íris;

- colocar mais cores no nosso arco-íris. Quem falou que ele só tem sete cores? Termos sempre, por perto, um baldinho para pintá-lo quantas vezes for necessário. E se manchar alguma cor, usarmos o baldinho de novo;

- acreditar no arco-íris. Insistirmos;

E o principal:

- nunca perdermos a oportunidade de olharmos para cima e enxergarmos o arco-íris que chegou. Precisamos nos lembrar de que ele nunca tocará a campainha para nos avisar. Se quisermos vê-lo, deveremos percebê-lo. E isto é para poucos. Muito poucos. Somente para aqueles que, raramente, têm blusas desnecessárias em mãos.

Para finalizar, deixo uma bela frase de Mário Quintana. Um escritor que certamente foi um apreciador de arco-íris:

“Não faças da tua vida um rascunho. Poderás não ter tempo de passá-la a limpo. ”

Portanto, que cada um de nós possa ter racionalidade de ver a chuva, porém sem descuidar da sensibilidade de enxergar e de perceber o arco-íris.