Trabalhei num banco cujo número
de funcionários, contando com os que viviam fora do País, somava 110 mil. Após
algum tempo, por medidas de eficiência e custo, este número foi reduzido para
90 mil. Mas mesmo assim, continuava a ser um número expressivo.
No entanto, a área de Ética tinha
apenas dois funcionários: um Gerente e um Superintendente. Trabalhavam sempre
dentro do horário, nunca os via correndo, raramente ficavam além das 18 horas.
Apenas uma vez presenciei o Superintendente estressado: a revisão do código de
ética da Empresa, cuja redação tinha sido criada por ele e pelo Gerente, com
muita dificuldade conseguiu ser aprovada pelo Comitê do Banco. Sempre quando o
Superintendente chegava até este Comitê para submeter o material à aprovação,
este assunto sempre ficava para depois. Alguns executivos falavam, inclusive,
que isto não era urgente. Poderia
esperar. E como esperou. Levou mais de um ano para a revisão ser aprovada. Após
pronto, este material foi incluído na intranet da Organização para que todos os
funcionários lessem e assinassem no campo descrito “ciente”. Era obrigatório
este procedimento. Será que por isto, então, a adesão foi de 100%? Pode ser...
Uma absoluta falta de importância
era dada ao tema, o que explicava, e muito, a falta de demandas que a área
tinha. Mas se houvesse valorização das pessoas que ali estavam e do tema em si,
quanto trabalho haveria para fazer. Mas não era isto o que ocorria lá. E esta
realidade era apenas o reflexo de uma sociedade que não priorizava a Ética. O
que continua. A Ética, definitivamente, está na agenda de poucos.
Como duas pessoas, apenas,
poderiam trabalhar este tema complexo e profundo numa empresa deste porte? Por
que poucas pessoas para um assunto com tanta demanda? Obviamente existem áreas
enxutas e eficientes. Mas não podemos exagerar. Por mais que haja eficiência,
não há como atender uma empresa deste porte, com este tamanho, apenas com duas
pessoas.
Ouvi pessoas dizerem: “Mas o que
a área de Ética faz? ”
Quando se tem esta dúvida, o
primeiro degrau, no comecinho da escada, ainda é pouco para nós. Deveríamos
ocupar os degraus que antecedem o início da escada. Talvez este seja o lugar
mais adequado para explicar este contexto.
imagem tirada da internet
No meio deste turbilhão no qual
estamos todos metidos, no Brasil, a corrupção se mostra velha amiga de todos.
Sempre esteve lá. E como companheira de jornada, a falta de ética também.
Caminham juntas para trilharem um caminho permitido por nós. Nossa estrada é
tão larga que, por descuido e negligência, esquecemos a porta aberta e elas,
comodamente, entraram e se instalaram. Mas, apesar de elas serem companheiras e
cúmplices, a corrupção é desordeira e indiscreta: aparece com a cara
escancarada na janela e ainda nos cumprimenta. Não há como não perceber a
presença dela. No entanto, a falta de ética é discreta, passa despercebida e
para não incomodar e nem chamar a nossa atenção, entra na nossa casa, mas não
abre a geladeira e nem acende as luzes. Desta forma, será mais difícil
identificá-la e percebê-la. Ela se camufla em conceitos tortos e
pré-concebidos, em valores questionáveis, na ausência da educação generalizada
e na falta de percepção e de lucidez que se tem sobre o que nos cerca, o que
nos ronda, o que exige a nossa atenção, mas que estamos desatentos.
Uma desatenção muito bem-vinda e providencial. Desta forma, quem nos
cobrará? Afinal, estamos desatentos, não é mesmo?
São tantas as notícias sobre
delações, corrupções e investigações que, num determinado momento, uma notícia
chamou a minha atenção mais que todas as outras: durante o depoimento, em
delação premiada da marqueteira que realizou a campanha da ex-Presidente, a
empresária revelou que pagou, aproximadamente, r$ 45 mil a um cabeleireiro
famoso referente a serviços prestados de cabelo e estética à ex-Presidente.
Quando questionado sobre isto, o cabeleireiro, sem o mínimo escrúpulo, disse:
“mas eu emiti nota fiscal. Para mim, está tudo certo. Realizei um serviço e fui
pago por isto. ”
A análise fria revela que sim,
não há problema quanto a isto. Ele foi chamado para realizar um serviço e foi
pago por isto. Mas o problema é que não somente de análises frias vivemos. Ética, escrúpulos e senso de moralidade
ainda deveriam pesar, e muito, em nossas decisões. Este fato revelado sobre o
cabeleireiro, frente ao que a marqueteira e o marido dela revelaram, é
irrelevante. Mas o descaso e o deboche com que os envolvidos trataram a questão
é digno de pena. A raiva e a revolta que estas pessoas nos causam é coisa do
passado.
O fato de emitirmos, então, uma
nota fiscal sobre um trabalho executado nos isenta da responsabilidade? Ver para quem executamos o serviço é algo
irrelevante, sem importância de ser observado? Não analisar o contexto e o
cenário no qual o fato se dá é desnecessário? Prestar um serviço a uma
ex-Presidente, mas receber o pagamento da marqueteira da campanha: esta
situação é normal? Não há problemas nisto? Prestamos serviços e não olhamos a
quem? Somente porque houve o pagamento, o problema deixa de existir?
A ausência de noção do básico, do
estrutural, do eixo está nos causando sérios problemas morais. A normalização
do escândalo e do sujo sendo limpo com o restante da dignidade que nos cabe.
Estamos nos tornando peritos na arte da alienação.
imagem tirada da internet
Não questionamos o trabalho deste
profissional, mas os olhos fechados dele para o contexto no qual ele foi
chamado, é muito triste. É preciso dar um passo adiante, raciocinar, ver a quem
oferecemos o nosso trabalho, com quem contribuímos, o que fazemos aqui. Ter
como escudo uma emissão de nota fiscal é convencer-se de que ser manipulado é a
melhor opção que se tem sobre a vida. Para que buscar ser melhor? Para que
lutar contra o óbvio, contra o lugar comum, contra a falta de ética? É mais
fácil seguir o caminho trilhado, o caminho dos falsos vencedores. Ser um
vencido na vida é uma proposta aceita por muitos. Muito mais fácil emitir uma
nota fiscal e fazer de conta que não viu ou, pior, que não se tem nada a ver
com isto.
As notas fiscais devem ser
emitidas apenas se concordamos com o trabalho realizado, mas não como desculpas
de uma alienação sufocante e contagiante.
Percebe-se um esforço muito
grande para conter e esconder o sujo, o inescrupuloso, o imoral. Mas não há como
esconder isto por muito tempo. A descoberta de que este tipo de atitude
alienada pertence a ordem do grupo dos derrotados, é só uma questão de tempo.
É preciso esforço para subir um
degrau na escada. Caso contrário, ficaremos sempre no mesmo degrau. E a escada
deteriorará com o tempo, principalmente se ela for de madeira.
Por isto, a Ética foi para o
Analista. Porque ela adoeceu. Porque ela perdeu o rumo. Talvez lá ela encontre
uma explicação para sua tão conturbada existência. Lá, no divã do Analista, ela é amiga do Rei, e terá a liberdade
de expressar seu ideal de existência. Um sonho de realidade que poderia
existir, se não fosse a nossa insistência em não permitir que ela exista.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um trecho da música Há Tempos, da banda Legião Urbana, que
diz:
“...E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade...”
Até os santos perderam a medida
da maldade, que dirá a Ética. Que possamos discernir nossos caminhos para que
possamos apressar a nossa chegada, e não ficarmos parados nos degraus que
antecedem o começo da escada, por escolha nossa.
Que possamos apressar a nossa
chegada a um lugar possível, a um lugar desejado, a um lugar ético, a um lugar
que espera por nós, a um lugar que existe: a nossa Pasárgada, mas que teimamos
em não o conhecer e em não o partilhar. E apressando a nossa chegada, poderemos
lembrar, aos que se esqueceram, o que nunca poderia ter sido esquecido.