terça-feira, 30 de maio de 2017

A Ética foi para o Analista

Trabalhei num banco cujo número de funcionários, contando com os que viviam fora do País, somava 110 mil. Após algum tempo, por medidas de eficiência e custo, este número foi reduzido para 90 mil. Mas mesmo assim, continuava a ser um número expressivo.

No entanto, a área de Ética tinha apenas dois funcionários: um Gerente e um Superintendente. Trabalhavam sempre dentro do horário, nunca os via correndo, raramente ficavam além das 18 horas. Apenas uma vez presenciei o Superintendente estressado: a revisão do código de ética da Empresa, cuja redação tinha sido criada por ele e pelo Gerente, com muita dificuldade conseguiu ser aprovada pelo Comitê do Banco. Sempre quando o Superintendente chegava até este Comitê para submeter o material à aprovação, este assunto sempre ficava para depois. Alguns executivos falavam, inclusive, que isto não era urgente. Poderia esperar. E como esperou. Levou mais de um ano para a revisão ser aprovada. Após pronto, este material foi incluído na intranet da Organização para que todos os funcionários lessem e assinassem no campo descrito “ciente”. Era obrigatório este procedimento. Será que por isto, então, a adesão foi de 100%? Pode ser...

Uma absoluta falta de importância era dada ao tema, o que explicava, e muito, a falta de demandas que a área tinha. Mas se houvesse valorização das pessoas que ali estavam e do tema em si, quanto trabalho haveria para fazer. Mas não era isto o que ocorria lá. E esta realidade era apenas o reflexo de uma sociedade que não priorizava a Ética. O que continua. A Ética, definitivamente, está na agenda de poucos.

Como duas pessoas, apenas, poderiam trabalhar este tema complexo e profundo numa empresa deste porte? Por que poucas pessoas para um assunto com tanta demanda? Obviamente existem áreas enxutas e eficientes. Mas não podemos exagerar. Por mais que haja eficiência, não há como atender uma empresa deste porte, com este tamanho, apenas com duas pessoas.

Ouvi pessoas dizerem: “Mas o que a área de Ética faz? ”

Quando se tem esta dúvida, o primeiro degrau, no comecinho da escada, ainda é pouco para nós. Deveríamos ocupar os degraus que antecedem o início da escada. Talvez este seja o lugar mais adequado para explicar este contexto.

imagem tirada da internet

No meio deste turbilhão no qual estamos todos metidos, no Brasil, a corrupção se mostra velha amiga de todos. Sempre esteve lá. E como companheira de jornada, a falta de ética também. Caminham juntas para trilharem um caminho permitido por nós. Nossa estrada é tão larga que, por descuido e negligência, esquecemos a porta aberta e elas, comodamente, entraram e se instalaram. Mas, apesar de elas serem companheiras e cúmplices, a corrupção é desordeira e indiscreta: aparece com a cara escancarada na janela e ainda nos cumprimenta. Não há como não perceber a presença dela. No entanto, a falta de ética é discreta, passa despercebida e para não incomodar e nem chamar a nossa atenção, entra na nossa casa, mas não abre a geladeira e nem acende as luzes. Desta forma, será mais difícil identificá-la e percebê-la. Ela se camufla em conceitos tortos e pré-concebidos, em valores questionáveis, na ausência da educação generalizada e na falta de percepção e de lucidez que se tem sobre o que nos cerca, o que nos ronda, o que exige a nossa atenção, mas que estamos desatentos.

Uma desatenção muito bem-vinda e providencial. Desta forma, quem nos cobrará? Afinal, estamos desatentos, não é mesmo?

São tantas as notícias sobre delações, corrupções e investigações que, num determinado momento, uma notícia chamou a minha atenção mais que todas as outras: durante o depoimento, em delação premiada da marqueteira que realizou a campanha da ex-Presidente, a empresária revelou que pagou, aproximadamente, r$ 45 mil a um cabeleireiro famoso referente a serviços prestados de cabelo e estética à ex-Presidente. Quando questionado sobre isto, o cabeleireiro, sem o mínimo escrúpulo, disse: “mas eu emiti nota fiscal. Para mim, está tudo certo. Realizei um serviço e fui pago por isto. ”

A análise fria revela que sim, não há problema quanto a isto. Ele foi chamado para realizar um serviço e foi pago por isto. Mas o problema é que não somente de análises frias vivemos. Ética, escrúpulos e senso de moralidade ainda deveriam pesar, e muito, em nossas decisões. Este fato revelado sobre o cabeleireiro, frente ao que a marqueteira e o marido dela revelaram, é irrelevante. Mas o descaso e o deboche com que os envolvidos trataram a questão é digno de pena. A raiva e a revolta que estas pessoas nos causam é coisa do passado.

O fato de emitirmos, então, uma nota fiscal sobre um trabalho executado nos isenta da responsabilidade? Ver para quem executamos o serviço é algo irrelevante, sem importância de ser observado? Não analisar o contexto e o cenário no qual o fato se dá é desnecessário? Prestar um serviço a uma ex-Presidente, mas receber o pagamento da marqueteira da campanha: esta situação é normal? Não há problemas nisto? Prestamos serviços e não olhamos a quem? Somente porque houve o pagamento, o problema deixa de existir?

A ausência de noção do básico, do estrutural, do eixo está nos causando sérios problemas morais. A normalização do escândalo e do sujo sendo limpo com o restante da dignidade que nos cabe. Estamos nos tornando peritos na arte da alienação.

imagem tirada da internet

Não questionamos o trabalho deste profissional, mas os olhos fechados dele para o contexto no qual ele foi chamado, é muito triste. É preciso dar um passo adiante, raciocinar, ver a quem oferecemos o nosso trabalho, com quem contribuímos, o que fazemos aqui. Ter como escudo uma emissão de nota fiscal é convencer-se de que ser manipulado é a melhor opção que se tem sobre a vida. Para que buscar ser melhor? Para que lutar contra o óbvio, contra o lugar comum, contra a falta de ética? É mais fácil seguir o caminho trilhado, o caminho dos falsos vencedores. Ser um vencido na vida é uma proposta aceita por muitos. Muito mais fácil emitir uma nota fiscal e fazer de conta que não viu ou, pior, que não se tem nada a ver com isto.

As notas fiscais devem ser emitidas apenas se concordamos com o trabalho realizado, mas não como desculpas de uma alienação sufocante e contagiante.

Percebe-se um esforço muito grande para conter e esconder o sujo, o inescrupuloso, o imoral. Mas não há como esconder isto por muito tempo. A descoberta de que este tipo de atitude alienada pertence a ordem do grupo dos derrotados, é só uma questão de tempo.

É preciso esforço para subir um degrau na escada. Caso contrário, ficaremos sempre no mesmo degrau. E a escada deteriorará com o tempo, principalmente se ela for de madeira.

Por isto, a Ética foi para o Analista. Porque ela adoeceu. Porque ela perdeu o rumo. Talvez lá ela encontre uma explicação para sua tão conturbada existência. Lá, no divã do Analista, ela é amiga do Rei, e terá a liberdade de expressar seu ideal de existência. Um sonho de realidade que poderia existir, se não fosse a nossa insistência em não permitir que ela exista.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um trecho da música Há Tempos, da banda Legião Urbana, que diz:

“...E há tempos nem os santos têm ao certo a medida da maldade...”

Até os santos perderam a medida da maldade, que dirá a Ética. Que possamos discernir nossos caminhos para que possamos apressar a nossa chegada, e não ficarmos parados nos degraus que antecedem o começo da escada, por escolha nossa.

Que possamos apressar a nossa chegada a um lugar possível, a um lugar desejado, a um lugar ético, a um lugar que espera por nós, a um lugar que existe: a nossa Pasárgada, mas que teimamos em não o conhecer e em não o partilhar. E apressando a nossa chegada, poderemos lembrar, aos que se esqueceram, o que nunca poderia ter sido esquecido.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

Acabou a água no seu chuveiro

Na época em que vivemos aquela escassez de água e racionamentos devido à crise de abastecimento e à forte seca que se abateu sobre o País, uma reunião de emergência foi convocada pelo síndico do prédio onde moro. No dia marcado, lá estavam todos nós reunidos no salão de festas. Todos não: moradores de três apartamentos não compareceram. Os demais estavam todos ali.

imagem tirada da internet

Fomos porque o assunto é de responsabilidade de todos ou porque estávamos prestes a ficar sem água em nossos chuveiros? Fomos porque sabemos que o coletivo se constrói a partir da colaboração individual ou porque, efetivamente, nossos interesses individuais seriam afetados? Fomos por interesses próprios ou porque temos a consciência do todo?

As respostas a cada uma das perguntas transitam dentro de cada um de nós.

A partir do momento que os moradores sentiram que, literalmente, a água poderia acabar dentro das casas, que a torneira secaria e que o banho ficaria comprometido, para eles, individualmente, o que se presenciou foi uma ilusão de união. Uma falsa união em nome de um individualismo que nos alimenta, dia após dia.

Desde que haja uma remota possibilidade de isto me afetar, tudo bem, podem contar comigo. Mas e se não me afetar? Aí terei muitas desculpas eficientes que justificarão a minha ausência.

Todos reunidos. Todos juntos. Todos presentes. Reunidos em busca de uma solução para si. Juntos para tratarem do individual. Presentes porque, apenas, a urgência do tema pedia uma presença física. Apenas por isso.

Avançamos no técnico, no mensurável e no concreto. Estacionamos no subjetivo, no abstrato, na moralidade e na educação.

Somente estávamos presentes porque, num primeiro momento, o individual seria afetado. Se, por acaso, soubéssemos que, apenas no nosso chuveiro, a água não acabaria, se tivéssemos esta certeza, será que iríamos à reunião? Acredito que não. Obviamente não podemos generalizar, mas honestamente falando, quem iria? Poucos. Os que já entenderam que, independentemente de serem ou não afetados pelo tema, sempre podem contribuir e colaborar. Pessoas que já entenderam que a construção coletiva se dá no desprender do individualismo. Que o fazer depende de várias mãos. Mas são poucos os que pensam assim.

Vivemos, de verdade, um paradoxo: ao mesmo tempo que queremos e buscamos um mundo melhor, não somos melhores para o mundo. Ao mesmo tempo que queremos a interação e buscamos espaços para nos expressar, nos isolamos, cada vez mais, nos nossos mundos fantasiosos e criados para alimentar as nossas utopias. Somos constantemente convidados para a construção, mas engrossamos a fila do fast. Somos chamados a opinar, mas o lugar sobre o muro ainda é um dos nossos preferidos. Reclamamos da submissão alheia, mas não queremos fazer parte da criação. A superficialidade das nossas relações agrava esta sensação e este sentimento de isolamento. Por isso estamos sempre com pressa, no amanhã, sem tempo para fazermos o que, de verdade precisa: nos conhecer. E quando nos conhecemos, começamos a entender porque fomos chamados a participar de uma simples reunião de condomínio, literal ou metaforicamente.

A responsabilidade é sempre do outro. Somente vou à reunião de condomínio porque preciso resolver a minha questão. Se a resolução do meu problema, coincidentemente, ajudar você resolver o seu, ótimo. Mas não foi esta a minha intenção.

Obviamente que não podemos sair nas ruas em busca de problemas para que possamos contribuir com soluções. Não se trata disto. Mas sim de não fugirmos dos convites feitos pela vida. Ela não costuma ser uma boa anfitriã com pessoas que recusam os seus convites.

Fugimos dos problemas. Fugimos das coisas chatas a serem feitas. Fugimos das nossas responsabilidades, muitas vezes. Fugimos das oportunidades que nos cercam e que poderiam, se não fossem as nossas recusas, fazer de nós pessoas melhores em todos os sentidos. Fugimos porque são situações cansativas, que nos expõem, que nos amedrontam e que nos confrontam, em muitos momentos, com o pior que há em nós. Porém, a divergência constrói. E o diferente, apesar de exigir muito da gente o tempo todo, nos engrandece. Fugimos das nossas reuniões de condomínios porque não queremos nos apropriar dos problemas e porque não queremos tomar contato com aquilo que nos incomoda. É a vida mostrando suas faces: o coletivo e o individualismo duelando diariamente. Por qual caminho seguir?

Queremos os benefícios, mas não queremos os custos que estes mesmos benefícios nos trazem. Morar em condomínio tem os seus benefícios, mas, e os custos? Destes fugimos, como sempre. Alguém sempre vai à reunião, não é mesmo? Então eu não preciso ir. Afinal, estou tão ocupado. Deixe isto para quem não trabalha.

“Isto é para quem tem tempo”, alguém diz. É preciso lembrar que o tempo é uma moeda de troca, e uma moeda que não aceita desaforos. Quanto mais se faz bem, mais tempo se tem para fazer todo o mais. Portanto, aquele que dedica um pouco do seu tempo para a construção do coletivo, mais tempo terá para a realização do que verdadeiramente precisa. E quem muito diz que não tem tempo é porque não sabe priorizar, não sabe o significado de foco e pouca intimidade tem com a palavra eficiência.

Tempo é uma questão de escolha. E é preciso ter tempo para o coletivo. Nem que este coletivo seja, apenas, uma reunião de condomínio, que é uma simbologia para tudo em nossas vidas. Um exemplo de ação plural a qual a vida nos convida a agir. Um bom exercício para conhecer e reconhecer quem somos.

Este individualismo que fez que todos descessem à reunião naquela noite. Um individualismo que se assustou com a possibilidade da falta de água. Foi só a normalização se apresentar, as represas de reequilibrarem para as pessoas, novamente, sumirem das reuniões.

Como o meu problema está resolvido, então não há mais problemas. Simples assim.

Quando doarmos um pouco do nosso tempo e quando ajudarmos a construir o coletivo, estaremos ocupados de nós mesmos. As coisas começarão a fazer sentido. Mas que façamos isto em silêncio, sem alardes e sem propagandas com letreiros garrafais.

É nossa obrigação contribuir para o coletivo. Mas que consigamos ultrapassar os limites desta obrigação, e que isto se torne uma possibilidade para todos nós de desenvolvimento e de crescimento.

Escolhemos viver coletivamente, mas temos dificuldades para entender o coletivo. Ele não se dá sozinho. Ele necessita da ação de cada um de nós. O individual é importante. Mas sozinho não faz o mínimo sentido. É o coletivo que dá sentido ao individual.

O individual e o coletivo se completam. E esta divergência constrói. Realiza. Concretiza.

Reconhecemo-nos solidários, mas até que ponto? Participar de uma reunião como esta, dar a nossa opinião e colaborar para o bem de todos, mesmo que a água no nosso chuveiro esteja abundante é uma forma de solidariedade. Mas este tipo de solidariedade não nos interessa. Portanto, não seria injusto dizer que nossa solidariedade é seletiva. Desconfio, até, se o adjetivo solidário nos cabe. Ou se nos cabe, a estrada está apenas começando.

Doamos dos nossos excessos. Isto não nos causa problemas e ainda nos presenteia com uma imagem de boa pessoa. Doamos dos excessos, mas não doamos para construir. Os excessos não atrapalham a minha novela. Mas a construção me fará perder alguns capítulos. Então não dará para ajudar. Desculpe qualquer coisa.

Do pequeno para o grande. Do interno para o externo. Do micro para o macro.

Se temos dificuldades de construir o coletivo dentro do nosso prédio, o que esperar, então, a partir das grades que nos cercam em nossos condomínios? O que esperar do portão para fora?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento da escritora brasileira Martha Medeiros, que diz:

“O egoísmo unifica os insignificantes”.

Que deixemos de lado, um pouquinho, o nosso egoísmo para que não nos tornemos insignificantes e sem sentido. O egoísmo nos revela seres desnecessários e irrelevantes. É uma pena. Porque chance é o que não nos falta para abandonarmos esta cadeira.

Que a gente busque participar mais de nossas reuniões de condomínios, tanto no sentido literal quanto no metafórico. E ao sairmos das reuniões e voltarmos para as nossas cadeiras do egoísmo, descobrirmos que elas não nos servirão mais.

E terá sido uma bela descoberta.

terça-feira, 2 de maio de 2017

Nossos habitantes indesejáveis

São muitos os que habitam em nós cuja presença queremos: o amor, a solidariedade, a compaixão, a vontade de fazer. No entanto, também são muitos os que habitam em nós cuja presença desprezamos. Mas apesar do nosso desprezo, não se intimidam e lá continuam, em nós, sem a mínima cerimônia. Afinal, de certa forma, os convidamos. Ou não? E todos nós sabemos que mandar uma visita embora depois de ter sido convidada é bem difícil e deselegante. A vida tem disto. E é preciso enfrentar estes habitantes que fazem de nós o que somos, o que não gostaríamos de ser e o que gostaríamos de ser.

A avareza é um destes habitantes indesejáveis. Somos todos avarentos. O que nos diferencia, talvez, seja a intensidade desta avareza presente em nós: uns mais outros menos. Mas não há dúvida quanto à presença dela em nós.

imagem tirada da internet

Em nosso racional, quando falamos sobre avareza, temos consciência de que não se trata de um bom habitante. Mas como não nos conhecemos com profundidade, ou melhor, não queremos nos conhecer com profundidade, não queremos assumir que somos avarentos e que a avareza faz parte da construção do nosso ser, no mundo. Assumir a nossa avareza é como se assumíssemos um crime. Temos vergonha. Nossa vaidade e nosso orgulho não permitiriam tamanha conscientização. Portanto, este rótulo e esta marca não nos pertencem.

Em nosso emocional, a consciência de que a avareza não se trata de um bom habitante também é presente. No entanto, não conseguimos disfarçar. As emoções sempre falam mais alto. E aí damos fartas demonstrações de nossa avareza, mesmo que o nosso racional insista em nos colocar num outro patamar. Num patamar de superioridade cujo merecimento ainda não alcançamos. Nesta hora, talvez a percepção de que “somos todos iguais”, se mostre e consiga nos convencer de que somos humanos, incompletos e falíveis.

Racionalmente, a explicação é linear, lógica, concreta e reta. Portanto, escondemos a nossa avareza com muita habilidade.

Emocionalmente, a explicação é ilógica, abstrata, irregular e tortuosa. Portanto, não conseguimos disfarçar e demonstramos a nossa avareza nos mínimos detalhes.

Por incrível que pareça, há razões para alimentarmos a avareza em nós. Por isto ainda ela está lá. E somente quando aceitarmos isto, conseguiremos, de verdade, ir para aquele outro patamar. A avareza, assim como os outros indesejáveis habitantes, nos traz benefícios que nos completam de alguma forma.

O problema somente começa a ser resolvido quando reconhecemos a existência dele. Portanto, se queremos deixar de ser avaros, primeiramente precisamos nos reconhecer como tal.

Na etimologia, a palavra “avarento” vem do latim avarus, que significa apego excessivo ao dinheiro, num primeiro momento. Mas também traz outros significados mais profundos como mesquinhez, insignificância, miserabilidade, sovinice e outros. Significa um desejo desesperado por algo que, de longe, faz sentido. Esta busca por algo sem sentido é sem limites. O avarento não sabe reconhecer o momento no qual suas necessidades foram atendidas. Pelo contrário, suas necessidades nunca são atendidas.

Ele, definitivamente, não conhece a abundância. Só conhece a escassez.

O avarento não tem apego, apenas, pelo dinheiro e por questões materiais. Seus apegos e seus excessos se dão na alma, muito além do físico. Recusa-se a aceitar o convite da vida para o olhar além, para o descortinar, para o conhecer, para o amadurecer. Recusa-se a enxergar o além porque sua visão é limitada. Não acredita no ilimitado. A base da vida dele é a escassez, a falta, a dificuldade, o pessimismo.

O avarento ainda não se encontrou com ele mesmo. Por isso acredita na falta. Ele não enfrenta os seus silêncios, os seus avessos, seus habitantes indesejáveis.

Economizamos sorrisos. Isto é avareza.

Os celulares têm recebido mais atenção do que as pessoas. Isto é avareza.

Os abraços têm sido dados por obrigação e por educação. Isto é avareza.

Abrimos mão do bem para não sofrermos. Isto é avareza.

O bom dia tem sido falado mecanicamente. Isto é avareza.

Nossos ouvidos têm trabalhado pouco. Isto é avareza.

Nossas falas têm trabalhado muito. Isto também é avareza.

Nossa resignação tem sido passiva e não ativa. Isto é avareza.

Nossa generosidade tem sido seletiva demais. Isto é avareza.

Estamos confundindo marketing pessoal com trabalho voluntário. Isto é mais que avareza.

O gerundismo que não se completa em ação concreta. Isto é avareza.

O indelegável que delegamos. Isto é avareza.

Não dividimos porque achamos que faltará para nós. Mas nos esquecemos de que a ausência de divisão é a própria falta.

Lutamos para negar nossas pequenezas. Mas é neste momento que elas mais aparecem.

O avarento não acredita em fontes que criam. Acredita no sofrimento como única forma de expressão. Ele negligencia a vida e tudo o que ela pode ser.

Qual é a vantagem de ser avarento? Conhecendo esta resposta, encontraremos o que nos faz resistir a ela. Mas há sempre aqueles que resistem a ficarem conscientes de suas próprias resistências. E isto faz perpetuar a avareza em nós, em cada um de nós.

Por medo de perder, não competimos. Por medo de morrer, não vivemos. Por medo de sonhar, matamos os nossos desejos e nossos sonhos. Talvez estas sejam algumas respostas que preenchem nossas necessidades doentes traduzidas na avareza. Como acreditamos na falta, por que e para quê buscarmos a fartura e a abundância?

O avarento é um acumulador de faltas. É uma ausência. É uma dificuldade de dar de si porque não se reconhece como um realizador, como um participante da vida. Ele não compartilha a sua abundância porque não se reconhece nela.

O avarento ilude-se com o transitório. Não conhece o permanente. Vive imerso a falsas necessidades criadas por ele mesmo para sustentar a sua crença nas faltas.

Enfim, quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Francisco Quevedo, escritor espanhol do século XVI, que diz:

“O avarento mais preferiria que o sol fosse de ouro para o cunhar, do que ter luz para ver e viver. ”

Que o pensamento acima provoque uma profunda reflexão em nós e profundas transformações. E que possamos ter acesso ao sol e à luz, mas como fontes de vida e não como fontes para alimentarmos nossos habitantes indesejáveis. E que eles, mortos de fome, se retirem por descobrirem que, pelo menos dentro de nós, nada mais os alimentará.