quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Campos doentes

Logo pela manhã, ao abrir a janela, a imagem abaixo me deu bom dia. Uma imagem comum, conhecida, banal. Afinal, o que há de especial num carro estacionado, na rua?


Quando não enxergamos mais aquilo que era para ser visto, significa que as dores, que são alimentadas pela nossa alienação, tomaram conta do espaço doado por nós. Espaços doados sem esforços; lugares doados porque não sabíamos (e ainda não sabemos) o que fazer com eles. Dores intensas que nos têm levado à cegueira, ao costumeiro, à aceitação do que não poderíamos e não deveríamos aceitar.

O que há de errado com este carro estacionado? Um limite ultrapassado. Simples assim. E, exatamente, por ser simples, ignoramos. Ignoramos o limite imposto pelo marcador amarelo, no chão, e ignoramos tudo aquilo que há por trás de algo simples porque subestimamos. Se há um limite para mim, é porque há o outro lado do espaço que te pertence. Se há um sinal para eu respeitar, é porque, ao parar, você poderá passar. Se há um marcador, há uma marca, um limite para ser respeitado porque outros chegarão e o lugar deles precisa ser validado.

Obviamente, não me refiro àquele limite que precisa ser quebrado como sinônimo de superação. Como vitória de reconhecimento de nossas forças. Refiro-me àquele limite que, se não respeitado, prejudica, traz custos e retrocessos. Dificulta o avanço, mas facilita a insanidade e a alienação.

São tantos os exemplos de cegueira sobre os limites que infringimos em relação aos outros, que ocupamos o lugar deles sem a menor cerimônia. E vice-versa. Uma cegueira aceita, institucionalizada, não percebida, não sentida. E esta é uma das mais perigosas. Exatamente por não a percebermos, ela vai se espalhando e se apossando do nosso pensar e do nosso olhar. Somos cegos que enxergam. Não nos faz falta o interpretar, o pensar, o refletir. Quem perde tempo interpretando, pensando e refletindo acerca de si, e do que faz, corre um importante risco de elevar-se. Mas não sentimos falta de elevação e nem de nada que nos traga trabalho e massa de construção. Por isso, aquela faixa amarela, pintada ali, no chão, é apenas um rabisco que, por não ser visto, não precisará ser refeito. Uma decoração feita por alguém que não sabe o próprio papel. Um passar de tempo.

Um passar de tempo para aquele que pinta o chão, que põe marca, que impõe limites. Mas faz isto para o vento, para o nada. Ninguém, ou quase ninguém, percebe. Passamos o tempo errando. E este mesmo tempo passa nos cobrando acertos. Uma equação que nunca fecha. Enquanto erramos, vamos nos fingindo mortos, caídos no caminho, apressados. Nosso nível de compreensão acerca destas coisas está bem aquém do que verdadeiramente é.

“Avancei só um pouquinho, dá para sair”, disse alguém.  Engraçado como sempre nos utilizamos dos diminutivos quando queremos ser simpáticos, solícitos e aceitos. Mas, no fundo, o que buscamos é uma indulgência para as nossas faltas, uma camuflagem, um diálogo morno, medíocre, sem pressa e sem demandas. Um diminutivo que obriga o outro a reduzir o tom porque você tentou ser “amigável”, não quis briga. Um diminutivo usado para se impor ao outro e assim, forçar desculpas compradas.

Somos errantes do caminho. Criticamos aqueles que vão a nossa frente, bem à frente, buscando nos corrigir e nos oferecer exemplos. Pessoas que respeitam o limite do outro, que não caminham por espaços não convidados, que usam os próprios sapatos e que limpam a própria lama, geralmente, são os chatos, os metódicos, os que chamamos inflexíveis. Somos uma sociedade que confunde conceitos.

O educado é um chato, um rígido nos costumes. O mal educado é assertivo.
O que respeita as regras é inflexível e retrógrado. E o que desrespeita é uma pessoa “disruptiva e que vai além”.
Aquele que não tem compromisso algum com a construção do próprio caminho se tornou aquele que “tem pressa de crescer”.
O impaciente com o tempo se tornou uma pessoa que apresenta um importante requisito de caráter: a “inquietação”.
O paciente, aquele que sabe o poder e a relevância da experiência e do tempo, é visto como alguém que não tem ambição, um acomodado.

Adoramos fazer apontamentos no caderno dos outros, mas vão vazios os nossos. Não sabemos nem os nossos limites, como respeitar o alheio, o que vai fora de nós? Como saber se excedemos o limite se nem ao menos o enxergamos? Somos frágeis tentando nos manter estendidos e equilibrados em meio aos nossos discursos pobres, sem convivência, contraditórios. Possuímos discursos sem diálogos, de poucas falas porque são somente as nossas que constam lá.

Muitas respostas que buscamos podem ser encontradas no significado das próprias palavras. Limite, a palavra que escolhi para refletir, hoje, tem sua raiz latina em “limes”, cujo significado é caminho entre dois campos, fronteira.

Caminho entre dois campos. Chega a ser poético se não fosse a nossa insistência em desmentir o Poeta. Um poeta que canta, que tenta nos tirar do ambiente das ideias e das falsas concessões. Caminho entre dois campos: o que nos leva ao próximo e o que aproxima o próximo de nós. Somos uma coisa só, um caminho entre dois campos, e não dois caminhos. Um caminho que começa em nós e continua no outro. Mas ainda temos muita dificuldade de entendermos isso exatamente por, ironicamente, ultrapassarmos os limites, seja aqui, aí, ali ou logo lá, além.

Limitar é, numa análise mais simples, então, um caminho construído entre estes dois campos: entre o meu e o seu. Se eu avanço para o seu caminho, como você caminhará? Se você invade o meu campo, como se dará este trajeto sobre o qual tenho compromissos?

Limites respeitados: diálogos construídos. Limites ultrapassados e desrespeitados: monólogos perpetuados. Limites respeitados: convites ao adiantamento sendo feitos. Limites ultrapassados e desrespeitados: definhamento do que deveria ter sido e não foi.

Ocupar-nos. Talvez seja isso o que nos falte. Precisamos nos ocupar da gente, nos escrever e saber o que vai em nossas linhas e entrelinhas. Habitar-nos, como disse o escritor. Um cuidar da gente não para nos envaidecermos, para sermos melhores, mais éticos, íntegros. Isto deve ser libertador. A Filósofa Viviane Mosé diz que “quem não se cuida despenca sobre o outro”. Em outras palavras, ultrapassa os limites. Precisamos de limites. Eles são necessários porque nos dão a dimensão do outro. Sem limites voltamos à selvageria, à barbárie. Precisamos voltar para nós porque desconfio que nos afastamos. Um pouco. Somos desconhecidos para nós mesmos. Somos doentes que desperdiçam a cura porque não a enxergam. Desrespeito ao limite do outro, ao reconhecimento do campo do outro é um sintoma da nossa sociedade. Uma sociedade que sofre, mas que não dá conta e nem ouvidos ao que diz o sofrimento. Por isso, adoecemos.

Como respeitar o limite do outro? Como reconhecer este caminho entre dois campos? Arrogância minha dizer que sei a resposta. Mas talvez um possível caminho seja trabalharmos na desconstrução deste erro de não permitirmos que o outro caminhe. E como fazer isso? Que tal começarmos por não ultrapassarmos a faixa amarela, nas guias das ruas?

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento lindo de Louis Pasteur, bacteriologista imprescindível e atemporal, que diz:

“Quando vejo uma criança, ela inspira-me dois sentimentos: ternura, pelo que é, e respeito pelo que pode vir a ser.”

Crianças não somos mais. Mas ainda podemos corresponder às expectativas de Pasteur e conquistarmos o respeito dele: nos esforçar para sermos quem poderemos ser. Ainda dá tempo.  Mas e quanto à ternura? Deixemos a ternura para os fortes. Se dermos conta da conquista do respeito, sermos ternos será somente uma questão de tempo.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Um pouco de banda

Nossa trajetória é a soma de passos. Muitos deles. Passos dados por nós. Por outros. Por conhecidos. Por desconhecidos. Passos longos, curtos; completos e interrompidos. Caminhadas sofridas, outras nem tanto. Andares atentos, desatentos. Andança com tanta areia, da lua cheia, onde andei, como diz a música. Em muitos dos nossos passos, andaimes nos foram oferecidos; em outros, andaimes retirados.

Andei. Ando. Andarei. Assim eu como você. Nossa caminhada não é de hoje, por isso nossas estradas vão cheias de anúncios de sucesso e de importância, outros vão descascando em função do tempo e da forte chuva que cai. Todos estes anúncios são importantes se estruturados em bases sólidas, nos interiores. Se não, um chuvisco mais forte borrará as letras dos anúncios, e o vento forte dará conta de finalizar o trabalho de expor as nossas decadências. Toda andança e trajetória são assim: somas e subtrações. Isso parece claro para todos nós. No entanto, o que não nos parece claro, e é este o tema central que proponho por meio deste texto, é o quanto estamos conscientes sobre a contribuição direta de outros nestas nossas trajetórias. O quanto de nossos caminhares existe porque os outros contribuíram.

Somos porque outros são, em nós. Porque outros foram, em nós. Porque outros serão, em nós. É preciso que isto esteja e seja visível. De outro modo, correremos o risco, se é que já não estamos correndo, de sermos injustos com aqueles que colocaram tijolos em nossas ruas e evidenciaremos a nossa alienação, que é uma espécie de solidão da contemporaneidade. Porque nossas ruas existem. E como existem, vários pés lá pisaram. Pisadas pesadas, duras, leves, concretas, abstratas, lineares etc. Não sabemos ao certo. Mas as marcas ficaram e nelas fomos constituídos e construídos.

Reconhecermos que somos, também, resultados, nos ajuda a crescer. Ajuda-nos a tomarmos posse do nosso real tamanho. Às vezes, queremos mostrar um tamanho que não temos, ocupar um espaço que não podemos, colocar papéis amassados e camuflados no colo do outro por pura vaidade, este oco que vai em nós. Isto é não reconhecer o que vai do outro, em nós. Somos produtos, resultados. E também construtores. Quando não reconhecemos a construção do outro, em nós, agimos por meio de monólogos, e não por meio de diálogos.

Há pessoas cujo currículo apresenta vivências no exterior, escolas renomadas, aquisições materiais de larga escala etc. A pergunta que fica é: o quanto disto tudo foi construção dele? E o quanto disto tudo foi construção daqueles que pisaram sobre o caminho desse que usufrui, hoje? Se estudamos numa excelente escola e este estudo nos proporcionou avanços em nossas carreiras, o mérito será mais nosso ou daqueles que depositaram tijolos sobre nossas calçadas nos permitindo ali, estudarmos? Nossos méritos ali estarão, obviamente, mas é preciso reconhecermos que, sem os passos dos que vieram, a probabilidade de ali estarmos seria drasticamente reduzida. Nossos méritos estão no avanço que damos ao que recebemos. Mas como avançarmos sobre algo se não recebermos este algo antes? Por isso, é imprescindível enxergarmos estas construções em nossas trajetórias. Trajetórias que nos permitem andar adiante porque os velhos, cansados ou não, por ali passaram.

É preciso darmos vozes para que as nossas possam ser ouvidas. É preciso irmos além de nós, porque outros existiram. É preciso darmos a autoria, aos outros, de muitas de nossas obras, porque, muitas de nossas obras têm, apenas, rabiscos que nos pertencem. O desenho e os traçados fortes não nos pertencem. É preciso nos reconhecermos como esboços e rascunhos para que sejamos merecedores de construções. Ninguém que negligencia os próprios borrões chega muito longe.

Carlos Drummond de Andrade, um dos grandes da Literatura mundial, num dos seus belíssimos trabalhos, diz:

“Do lado esquerdo carrego meus mortos.
Por isso caminho um pouco de banda”.

Caminhar de banda, um pouco de banda, é para aqueles que já entenderam que a vida é feita de outros, em nós, e de tudo o que caiba dentro destes outros. Nossos ombros vão ficando pesados porque nossos mortos pesam e nos sobrepõem, muitas vezes. Não pesados como sinônimo de cansaço, mas no sentido da existência, do realizado, do construído. Todo peso carrega uma história, e toda a história tem peso. Um peso que se relaciona conosco porque conversa conosco, intimamente. Somos milhares de uns dentro da gente. Somos diversos eus, muito mais que os heterônimos de Fernando Pessoa.

Não pesados como sem valia; não mortos como acabados. Mas pesados porque carregam sentidos e significados. Mortos porque se transformaram na nossa extensão.

É preciso nos reconhecer, um pouco de banda, nos enxergar andando tortos e curvados de lado. Lá eles estão reavivando nossas memórias, nossas vírgulas e parênteses, nossas pazes com aquilo que recusamos, nossos contrastes iluminados, nossas irregularidades visíveis. Nossos mortos nos mostram o que teimamos em não ver. Recusamos a visita deles, mas eles chegam. Sempre chegam. Por acharmos que a construção é sempre nossa, por acreditarmos que a jornada sempre pertence apenas a nós, nos tornamos especialistas em alienações. Generalistas de um assunto só, cujo conteúdo nunca entendemos.

Somos seres inadaptados, não prontos, não concluídos. Por isso, nossos esforços doem. As contradições significam o material que nos constitui. Somos exilados, em nós. Mas nossos mortos nos reconduzem ao caminho que teimamos em não reconhecer. Nossa história é o nosso morto. Tudo o que nela está, pesa sobre os nossos ombros, por isso, é preciso andar um pouco de banda para não nos esquecer, assim como disse Drummond.

Uma ajuda recebida, uma ofensa perdoada, um aperto de mão, uma humilhação envergonhada, uma escorregada que demos (mas que o outro já se esqueceu): tudo isso significa nossos mortos. Um assento esvaziado, um andar calmo, uma palavra dita na hora mais precisada, um “deixa isso pra lá”, uma falta nossa que o ofendido fingiu que não viu: tudo isso significa nossos mortos. Por isso, eles pesam.

Nossos mortos lá estão, aqui estão: nos meus ombros e nos seus. Eles nos trouxeram até aqui. Não mortos-vivos, mas mortos que vivem. Vivem em nós. Somos o que deles foi deixado em nós. É preciso honrá-los, vivê-los, admirá-los. Acima de tudo, é preciso gratidão. Uma das raízes da palavra gratidão é dar “boas-vindas”. Portanto, ser grato, significa, além de outras coisas, darmos boas-vindas àqueles que sempre estiveram lá, mas raramente foram reconhecidos e vistos.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com uma frase de Cícero, Filósofo e Pensador da Roma antiga, que diz:

“Nenhum dever é mais importante do que a gratidão.”

Dever. Um dever darmos visibilidade a eles. De andarmos um pouco de banda para que, ao passarmos, as pessoas digam: “lá vai aquele cujas costas carregam os próprios mortos. Carregam a própria obra.” Uma obra construída por muitos e de muitos. Porque somos muitos. Continuarão: “lá vai aquele cujas costas carregam a compreensão para enxergar o que está próximo. Lá vai aquele cujas costas carregam lições distantes, dadas e construídas por seus mortos, e que, exatamente, por isso, evitaram que ele chegasse cansado no final.”

Que nossos mortos sejam vistos e reconhecidos. Se assim for, espelhos cairão sobre nós, felizes, porque, enfim, poderão refletir a verdade, e não imagens distorcidas que mostramos e impomos, ao mundo e aos outros, sob fortes luzes artificiais, acesas por nós. O espelho, assim como a vida, há tempos tenta nos oferecer luzes naturais para que possamos nos ver, de verdade, tortos e de banda.

Quando abandonarmos a recusa de nos enxergar sob luzes naturais, nosso itinerário ficará mais claro e mais leve. Nossos métodos se simplificarão e aceitaremos a História para explicar a nossa história. Tomaremos distância do mofo que nos manteve sob luzes artificiais. E naquela hora, tortos e um pouco de banda, nos reconheceremos, assim tortos, assim um pouco de banda, assim como somos, assim incompletos. Não um ser em linha reta criticado por Fernando Pessoa, mas um ser que se compreende como a soma de tudo o que, inegavelmente, a ele pertence.