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pela manhã, ao abrir a janela, a imagem abaixo me deu bom dia. Uma imagem
comum, conhecida, banal. Afinal, o que há de especial num carro estacionado, na
rua?
Quando
não enxergamos mais aquilo que era para ser visto, significa que as dores, que
são alimentadas pela nossa alienação, tomaram conta do espaço doado por nós.
Espaços doados sem esforços; lugares doados porque não sabíamos (e ainda não
sabemos) o que fazer com eles. Dores intensas que nos têm levado à cegueira, ao
costumeiro, à aceitação do que não poderíamos e não deveríamos aceitar.
O que
há de errado com este carro estacionado? Um limite ultrapassado. Simples assim.
E, exatamente, por ser simples, ignoramos. Ignoramos o limite imposto pelo
marcador amarelo, no chão, e ignoramos tudo aquilo que há por trás de algo
simples porque subestimamos. Se há um limite para mim, é porque há o outro lado
do espaço que te pertence. Se há um sinal para eu respeitar, é porque, ao
parar, você poderá passar. Se há um marcador, há uma marca, um limite para ser
respeitado porque outros chegarão e o lugar deles precisa ser validado.
Obviamente,
não me refiro àquele limite que precisa ser quebrado como sinônimo de
superação. Como vitória de reconhecimento de nossas forças. Refiro-me àquele
limite que, se não respeitado, prejudica, traz custos e retrocessos. Dificulta
o avanço, mas facilita a insanidade e a alienação.
São
tantos os exemplos de cegueira sobre os limites que infringimos em relação aos
outros, que ocupamos o lugar deles sem a menor cerimônia. E vice-versa. Uma
cegueira aceita, institucionalizada, não percebida, não sentida. E esta é uma
das mais perigosas. Exatamente por não a percebermos, ela vai se espalhando e
se apossando do nosso pensar e do nosso olhar. Somos cegos que enxergam. Não
nos faz falta o interpretar, o pensar, o refletir. Quem perde tempo
interpretando, pensando e refletindo acerca de si, e do que faz, corre um
importante risco de elevar-se. Mas não sentimos falta de elevação e nem de nada
que nos traga trabalho e massa de construção. Por isso, aquela faixa amarela,
pintada ali, no chão, é apenas um rabisco que, por não ser visto, não precisará
ser refeito. Uma decoração feita por alguém que não sabe o próprio papel. Um
passar de tempo.
Um
passar de tempo para aquele que pinta o chão, que põe marca, que impõe limites.
Mas faz isto para o vento, para o nada. Ninguém, ou quase ninguém, percebe. Passamos
o tempo errando. E este mesmo tempo passa nos cobrando acertos. Uma equação que
nunca fecha. Enquanto erramos, vamos nos fingindo mortos, caídos no caminho,
apressados. Nosso nível de compreensão acerca destas coisas está bem aquém do
que verdadeiramente é.
“Avancei
só um pouquinho, dá para sair”, disse alguém. Engraçado como sempre nos utilizamos dos
diminutivos quando queremos ser simpáticos, solícitos e aceitos. Mas, no fundo,
o que buscamos é uma indulgência para as nossas faltas, uma camuflagem, um
diálogo morno, medíocre, sem pressa e sem demandas. Um diminutivo que obriga o
outro a reduzir o tom porque você tentou ser “amigável”, não quis briga. Um
diminutivo usado para se impor ao outro e assim, forçar desculpas compradas.
Somos
errantes do caminho. Criticamos aqueles que vão a nossa frente, bem à frente,
buscando nos corrigir e nos oferecer exemplos. Pessoas que respeitam o limite
do outro, que não caminham por espaços não convidados, que usam os próprios
sapatos e que limpam a própria lama, geralmente, são os chatos, os metódicos,
os que chamamos inflexíveis. Somos uma sociedade que confunde conceitos.
O
educado é um chato, um rígido nos costumes. O mal educado é assertivo.
O que
respeita as regras é inflexível e retrógrado. E o que desrespeita é uma pessoa
“disruptiva e que vai além”.
Aquele
que não tem compromisso algum com a construção do próprio caminho se tornou
aquele que “tem pressa de crescer”.
O
impaciente com o tempo se tornou uma pessoa que apresenta um importante
requisito de caráter: a “inquietação”.
O
paciente, aquele que sabe o poder e a relevância da experiência e do tempo, é
visto como alguém que não tem ambição, um acomodado.
Adoramos
fazer apontamentos no caderno dos outros, mas vão vazios os nossos. Não sabemos
nem os nossos limites, como respeitar o alheio, o que vai fora de nós? Como
saber se excedemos o limite se nem ao menos o enxergamos? Somos frágeis
tentando nos manter estendidos e equilibrados em meio aos nossos discursos
pobres, sem convivência, contraditórios. Possuímos discursos sem diálogos, de
poucas falas porque são somente as nossas que constam lá.
Muitas
respostas que buscamos podem ser encontradas no significado das próprias
palavras. Limite, a palavra que escolhi para refletir, hoje, tem sua raiz latina
em “limes”, cujo significado é caminho entre dois campos, fronteira.
Caminho
entre dois campos. Chega a ser
poético se não fosse a nossa insistência em desmentir o Poeta. Um poeta que
canta, que tenta nos tirar do ambiente das ideias e das falsas concessões.
Caminho entre dois campos: o que nos leva ao próximo e o que aproxima o
próximo de nós. Somos uma coisa só, um caminho entre dois campos, e não
dois caminhos. Um caminho que começa em nós e continua no outro. Mas ainda
temos muita dificuldade de entendermos isso exatamente por, ironicamente,
ultrapassarmos os limites, seja aqui, aí, ali ou logo lá, além.
Limitar
é, numa análise mais simples, então, um caminho construído entre estes dois
campos: entre o meu e o seu. Se eu avanço para o seu caminho, como você
caminhará? Se você invade o meu campo, como se dará este trajeto sobre o qual
tenho compromissos?
Limites
respeitados: diálogos construídos. Limites ultrapassados e desrespeitados:
monólogos perpetuados. Limites respeitados: convites ao adiantamento sendo
feitos. Limites ultrapassados e desrespeitados: definhamento do que deveria ter
sido e não foi.
Ocupar-nos.
Talvez seja isso o que nos falte. Precisamos nos ocupar da gente, nos escrever
e saber o que vai em nossas linhas e entrelinhas. Habitar-nos, como disse o
escritor. Um cuidar da gente não para nos envaidecermos, para sermos melhores,
mais éticos, íntegros. Isto deve ser libertador. A Filósofa Viviane Mosé diz
que “quem não se cuida despenca sobre o outro”. Em outras palavras, ultrapassa
os limites. Precisamos de limites. Eles são necessários porque nos dão a
dimensão do outro. Sem limites voltamos à selvageria, à barbárie. Precisamos
voltar para nós porque desconfio que nos afastamos. Um pouco. Somos
desconhecidos para nós mesmos. Somos doentes que desperdiçam a cura porque não
a enxergam. Desrespeito ao limite do outro, ao reconhecimento do campo do outro
é um sintoma da nossa sociedade. Uma sociedade que sofre, mas que não dá conta
e nem ouvidos ao que diz o sofrimento. Por isso, adoecemos.
Como
respeitar o limite do outro? Como reconhecer este caminho entre dois campos?
Arrogância minha dizer que sei a resposta. Mas talvez um possível caminho
seja trabalharmos na desconstrução deste erro de não permitirmos que o outro
caminhe. E como fazer isso? Que tal começarmos por não ultrapassarmos a faixa
amarela, nas guias das ruas?
Quero
encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento lindo de Louis
Pasteur, bacteriologista imprescindível e atemporal, que diz:
“Quando
vejo uma criança, ela inspira-me dois sentimentos: ternura, pelo que é, e
respeito pelo que pode vir a ser.”
Crianças
não somos mais. Mas ainda podemos corresponder às expectativas de Pasteur
e conquistarmos o respeito dele: nos esforçar para sermos quem poderemos ser.
Ainda dá tempo. Mas e quanto à ternura?
Deixemos a ternura para os fortes. Se dermos conta da conquista do respeito,
sermos ternos será somente uma questão de tempo.