As luzes acesas e coloridas na
avenida Paulista, há alguns dias, me fizeram despertar para o Natal que
novamente havia chegado. Sempre sabemos quando ele chega. Nesta época, ficamos
com aquela sensação de termos pendências pendentes, na agenda, o que nos faz
fazer de conta que o Natal ainda demora a chegar. Como as coisas a serem feitas
insistem na presença, fingimos não ouvir a campainha de casa que toca,
sinalizando que o querido Noel acaba
de chegar. E no silêncio do nosso fingimento, achamos que despistamos o querido Noel que bate a nossa porta. Como
de inocente ele nada tem, percebe logo a nossa farsa e nos desmascara acessando
as nossas janelas que, desavisados que somos, nos esquecemos de fechá-las
naquele golpe de vento que deu há bastante tempo.
Como nos julgamos espertos,
fechamos as janelas também. Assim, o querido
Noel, sem opção, deve bater em outra porta e deixar de nos lembrar da presença
dele, e com isso, os afazeres empilhados, o tempo percorrido e aprendido, e
também o tempo transcorrido e perdido. Fechando todos os acessos de nossa casa,
deixamos de ver a luz, mas em compensação, as cobranças do Noel, que sempre são
implacáveis. Ele sempre surge com uma listinha e nos pede uma meia horinha de
prosa.
Novamente ele nos surpreende, e
tenta acesso a nós por meio das brechas que surgem em nossas portas e janelas.
Corremos para estancar estas brechas. Mais uma vez conseguimos. Ele tenta,
então, encontrar alguma porta em nossa casa que esteja, apenas, encostada, e
assim, fazer uma surpresa para nós. Mas tivemos o cuidado de trancar todas as
portas. Sobram as rachaduras nas
paredes, portas, janelas e telhados. Com muita dificuldade, ele tenta passar
pelas rachaduras, mas tapamos todas naquela última reforminha que fizemos, em casa.
O querido Noel, desolado, fica do lado de fora, somente conseguindo
mostrar que chegou para as luzes da cidade e para estampar enfeites nas portas
das casas, do lado de fora.
Mais uma vez, ele toca a
campainha. Ele é insistente. Não desiste da gente. Ficamos em silêncio para que
ele pense que não há gente em casa. “Assim ele vai embora, pensamos.”
Fomos certeiros. O querido Noel
não teve acesso a nossa casa. Podemos continuar fingindo que o tempo nos
espera, que o trabalho pendente é só um detalhe sem importância, que o avançar
das horas é só uma metáfora e que a vida deverá seguir as nossas regras. Podemos continuar fingindo que as dores não existem,
que o remédio para a dor é a utilização de mais remédio, que a multidão de
amigos que temos é verdadeira e que somos o centro do Universo.
O faz-de-conta ainda é uma ferramenta bem poderosa dos nossos tempos.
De todos os tempos. Enquanto formos estranhos a nós mesmos, o faz-de-conta
ainda dará conta de nossos vazios.
Fomos cuidadosos no trancar de
todos os acessos. E com ele, trancamos, também, o acesso à luz que vinha do
sol, lá fora, mas que insistimos em esvaziá-lo porque, além de tudo, desbota os nossos tecidos e os nossos móveis.
Assim, nossa casa ficou escura e nada mais foi possível enxergar. Como
inteligência nem sempre foi o nosso forte, acendemos as luzes ao invés de
repensarmos o abrir das janelas. E ao acendermos as luzes da nossa casa, porque fechamos todos os acessos, uma
imensa poeira e sujeira avistamos.
Uma poeira nossa. Uma sujeira
construída. Uma desordem implacável se convida.
Nessa hora, de posse da nossa
realidade, um balde e uma vassoura surgem no nosso ambiente. E também um lindo
saco de presente embrulhado e etiquetado com o nosso nome. Eles não estavam lá.
E aí, sentimos um ventinho que vem lá de baixo. Corremos para ver e damos de
cara com o nosso querido Noel, saindo
pela janela, que esquecemos aberta,
do nosso quartinho dos fundos, aquele da bagunça. Como é um lugar para
depósitos de esquecidos e de pendências, há tempos não descemos lá. E não é que
o nosso querido Noel descobriu esta
entrada? Esperto ele. Sempre deixamos
pistas. Somos falíveis. Ainda bem.
Não é à toa que ele já se encontra numa posição de nos visitar. E nós,
ainda, na condição de visitados.
Descobrimos, então, o autor dos
presentes. A bota preta do nosso querido
Noel e o saco vermelho repleto de realizações, assim como de afazeres, são inconfundíveis. Mesmo ele tendo saído
bem rápido, pela janela, o reconhecemos muito bem. Ele ainda acenou para nós
com um largo sorriso.
Os sábios não param nas pequenezas da vida. Por isso, ele nos deu um
largo sorriso mesmo que tenhamos fechado quase todas as entradas para ele.
Inteligência realmente não é o
nosso forte. Mas há exceções e estamos no caminho. Nada de determinismos.
Portanto, somos capazes, ainda, de entendermos o significado de um balde e de
uma vassoura. O nosso querido Noel foi
implacável: percebeu que nossa casa precisava de uma boa faxina. Se o tivéssemos
deixado entrar pela porta da frente, com
a presença do sol, talvez ele não percebesse tanto a sujeira. Mas como
fechamos tudo, ou quase tudo, a
escuridão foi a nossa guia, ele pôde enxergar a nossa sujeira com propriedade,
principalmente no quartinho da bagunça, com entulhos, sobras, mofos e coisas
para um dia ver.
Mas e o presente com a etiqueta
nominal a cada um de nós? Fomos todos espiar. E na etiqueta constava, além do
nome de cada um de nós, um recadinho do Noel que dizia: “primeiro a faxina.
Depois o embrulho. Com a casa limpa, será mais fácil você apreciar o presente
que eu te trouxe.”
Uma vergonha se apossa de nós.
Faz parte. Olhamos ao redor e realmente precisamos fazer uma faxina, e
daquelas! Mas esperamos o nosso querido
Noel chegar para nos darmos conta disso. Por isso, ele carrega uma falsa
culpa daquele que nos cobra. A presença dele é bem-vinda, mas sempre carregada
de um peso de algo não concluído, não realizado.
Ele não nos cobra. Ele nos lembra. A responsabilidade pela faxina é nossa,
e não dele.
Relutamos para começar a faxina.
É cansativo. Reclamamos que o balde pesa, que faltou algum produto ou que a
vassoura está velha. Somos peritos na dissimulação. Mas o balde e a vassoura
ficam ali, nos contemplando e atentos às desculpas que vamos dar. Resistimos
enquanto nossas desculpas fizerem sentido e enquanto o tempo se disfarçar de
nosso cúmplice. Mas a poeira ali, descortinada pelas luzes que acendemos porque escondemos o sol, nos faz ver que
o nosso querido Noel tinha razão: uma
faxina precisa ser feita. E rápido.
Faxinar é uma arte, não é para
qualquer um. É uma disposição dirigida para o fazer, sem saber se chegaremos a
algum lugar. Enquanto faxinamos, reencontramos poeiras, teias, velharias,
inutilidades e espaços ocupados pelo desnecessário. Mas também encontramos
objetos e alegrias escondidos que merecem destaque na nossa bela decoração.
Reorganizamos prateleiras, sobram espaços e nossos significados começam a tomar
forma.
Enxergar nossos cantos e nossos
arredores significa sermos o artesão da nossa obra. E a nossa matéria prima é a
nossa singularidade. É nisto que nos diferenciamos. Somos singulares e
precisamos fazer as pazes com tudo o que nos trouxe até aqui. Faxinar é
traduzir as interpretações que indicam caminhos, que reforçam sentidos e nos
dão a direção.
É preciso amar nossos labirintos
e incompletudes porque serão eles quem nos levarão a outras janelas e a outros
caminhos. Nossos labirintos esquisitos e desconhecidos nos afastam da
integridade, que é a coragem de carregar a nós mesmos, independentemente da
roupa que estivermos vestindo.
Dar voz e rosto para as nossas
dores é aceitar o convite da faxina. Reencontrar os nossos hiatos que foram provocados
pelas nossas ausências. Somos ausentes de nós mesmos e frequentes nesta prática.
Não podemos ir pelo campo do “eu
já sei”. Não podemos replicar modelos de reprodução, de repetição. Seguir o script sem questionar nos leva ao
imobilismo. Por isso, nos assustamos com a visita do nosso querido Noel.
Scripts são domesticadores e não incentivadores de outros
pensamentos e construções. Não buscamos construtores, mas sim, seguidores de
regras prontas e estabelecidas geralmente por pessoas que desconhecem o que
verdadeiramente importa.
O mundo pede outros papéis.
Aqueles que não estejam no script.
Faxinar é alcançar este patamar de pensamento e saber que é preciso caminhar e
avançar. É preciso transgredir as regras, se assim for necessário, o que
significa, muitas vezes, sair do script.
Desobedecer. Quando nos apropriamos do nosso balde, da nossa vassoura e
seguimos para a faxina, certamente desobedeceremos àquele que luta pelo nosso
adiamento.
São inúmeras as saídas, mas
muitas vezes não temos a chave de nenhuma das portas. Por isso, é
imprescindível a faxina. Um ser alienado não se conhece. Quer fazer passos
aéreos, no entanto, o convite da vida é por passos térreos e firmes. Uma
faxina. A arte de faxinar.
O convite está colocado sobre a
mesa, aliás sobre o balde e a vassoura. O que se busca é seguir. A vida jamais
pedirá para pararmos. A vida não é apostilada. Não possui um formato.
Pode ser que tentem interromper a
nossa faxina, principalmente nesta época do ano que costumamos ter mais
afazeres ainda. Mas será preciso seguir com o trabalho. Sempre vale a pena. A
faxina cansa. Mas somente a gente sabe fazer. É um trabalho indelegável.
Quero encerrar este texto, mas
não a reflexão, com um pensamento de Buda, que diz:
“Não é possível seguir o caminho
antes de ter se tornado parte dele.”
A visita do nosso querido Noel
era para isso: para nos lembrar deste valioso trabalho a ser feito. Faxinar é
nos apropriar e nos tornar parte do nosso caminho. Somente depois disto,
poderemos abrir aquele pacote que ele nos deixou. Que sejamos atenciosos com o
tempo, com o passar dele e com os pedidos que ele nos faz.
A fluência da vida, e na vida, nos faz conquistar condições
para preenchermos os buracos que criamos ao fecharmos as portas para o sol e
para o nosso querido Noel.
Que a gente busque, sem descanso,
o nosso brilho e renuncie àquilo que nos explora. Fácil caminhada não será. Mas
somente a atitude de buscá-la nos deixará mais próximos dela.