quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

A arte de faxinar

As luzes acesas e coloridas na avenida Paulista, há alguns dias, me fizeram despertar para o Natal que novamente havia chegado. Sempre sabemos quando ele chega. Nesta época, ficamos com aquela sensação de termos pendências pendentes, na agenda, o que nos faz fazer de conta que o Natal ainda demora a chegar. Como as coisas a serem feitas insistem na presença, fingimos não ouvir a campainha de casa que toca, sinalizando que o querido Noel acaba de chegar. E no silêncio do nosso fingimento, achamos que despistamos o querido Noel que bate a nossa porta. Como de inocente ele nada tem, percebe logo a nossa farsa e nos desmascara acessando as nossas janelas que, desavisados que somos, nos esquecemos de fechá-las naquele golpe de vento que deu há bastante tempo.

Como nos julgamos espertos, fechamos as janelas também. Assim, o querido Noel, sem opção, deve bater em outra porta e deixar de nos lembrar da presença dele, e com isso, os afazeres empilhados, o tempo percorrido e aprendido, e também o tempo transcorrido e perdido. Fechando todos os acessos de nossa casa, deixamos de ver a luz, mas em compensação, as cobranças do Noel, que sempre são implacáveis. Ele sempre surge com uma listinha e nos pede uma meia horinha de prosa.

Novamente ele nos surpreende, e tenta acesso a nós por meio das brechas que surgem em nossas portas e janelas. Corremos para estancar estas brechas. Mais uma vez conseguimos. Ele tenta, então, encontrar alguma porta em nossa casa que esteja, apenas, encostada, e assim, fazer uma surpresa para nós. Mas tivemos o cuidado de trancar todas as portas. Sobram as rachaduras nas paredes, portas, janelas e telhados. Com muita dificuldade, ele tenta passar pelas rachaduras, mas tapamos todas naquela última reforminha que fizemos, em casa.

O querido Noel, desolado, fica do lado de fora, somente conseguindo mostrar que chegou para as luzes da cidade e para estampar enfeites nas portas das casas, do lado de fora.

Mais uma vez, ele toca a campainha. Ele é insistente. Não desiste da gente. Ficamos em silêncio para que ele pense que não há gente em casa. “Assim ele vai embora, pensamos.”

Fomos certeiros. O querido Noel não teve acesso a nossa casa. Podemos continuar fingindo que o tempo nos espera, que o trabalho pendente é só um detalhe sem importância, que o avançar das horas é só uma metáfora e que a vida deverá seguir as nossas regras. Podemos continuar fingindo que as dores não existem, que o remédio para a dor é a utilização de mais remédio, que a multidão de amigos que temos é verdadeira e que somos o centro do Universo.

O faz-de-conta ainda é uma ferramenta bem poderosa dos nossos tempos. De todos os tempos. Enquanto formos estranhos a nós mesmos, o faz-de-conta ainda dará conta de nossos vazios.

Fomos cuidadosos no trancar de todos os acessos. E com ele, trancamos, também, o acesso à luz que vinha do sol, lá fora, mas que insistimos em esvaziá-lo porque, além de tudo, desbota os nossos tecidos e os nossos móveis. Assim, nossa casa ficou escura e nada mais foi possível enxergar. Como inteligência nem sempre foi o nosso forte, acendemos as luzes ao invés de repensarmos o abrir das janelas. E ao acendermos as luzes da nossa casa, porque fechamos todos os acessos, uma imensa poeira e sujeira avistamos.

Uma poeira nossa. Uma sujeira construída. Uma desordem implacável se convida.

Nessa hora, de posse da nossa realidade, um balde e uma vassoura surgem no nosso ambiente. E também um lindo saco de presente embrulhado e etiquetado com o nosso nome. Eles não estavam lá. E aí, sentimos um ventinho que vem lá de baixo. Corremos para ver e damos de cara com o nosso querido Noel, saindo pela janela, que esquecemos aberta, do nosso quartinho dos fundos, aquele da bagunça. Como é um lugar para depósitos de esquecidos e de pendências, há tempos não descemos lá. E não é que o nosso querido Noel descobriu esta entrada? Esperto ele. Sempre deixamos pistas. Somos falíveis. Ainda bem.

Não é à toa que ele já se encontra numa posição de nos visitar. E nós, ainda, na condição de visitados.

Descobrimos, então, o autor dos presentes. A bota preta do nosso querido Noel e o saco vermelho repleto de realizações, assim como de afazeres, são inconfundíveis. Mesmo ele tendo saído bem rápido, pela janela, o reconhecemos muito bem. Ele ainda acenou para nós com um largo sorriso.

Os sábios não param nas pequenezas da vida. Por isso, ele nos deu um largo sorriso mesmo que tenhamos fechado quase todas as entradas para ele.

Inteligência realmente não é o nosso forte. Mas há exceções e estamos no caminho. Nada de determinismos. Portanto, somos capazes, ainda, de entendermos o significado de um balde e de uma vassoura. O nosso querido Noel foi implacável: percebeu que nossa casa precisava de uma boa faxina. Se o tivéssemos deixado entrar pela porta da frente, com a presença do sol, talvez ele não percebesse tanto a sujeira. Mas como fechamos tudo, ou quase tudo, a escuridão foi a nossa guia, ele pôde enxergar a nossa sujeira com propriedade, principalmente no quartinho da bagunça, com entulhos, sobras, mofos e coisas para um dia ver.

Mas e o presente com a etiqueta nominal a cada um de nós? Fomos todos espiar. E na etiqueta constava, além do nome de cada um de nós, um recadinho do Noel que dizia: “primeiro a faxina. Depois o embrulho. Com a casa limpa, será mais fácil você apreciar o presente que eu te trouxe.”

Uma vergonha se apossa de nós. Faz parte. Olhamos ao redor e realmente precisamos fazer uma faxina, e daquelas! Mas esperamos o nosso querido Noel chegar para nos darmos conta disso. Por isso, ele carrega uma falsa culpa daquele que nos cobra. A presença dele é bem-vinda, mas sempre carregada de um peso de algo não concluído, não realizado.

Ele não nos cobra. Ele nos lembra. A responsabilidade pela faxina é nossa, e não dele.

Relutamos para começar a faxina. É cansativo. Reclamamos que o balde pesa, que faltou algum produto ou que a vassoura está velha. Somos peritos na dissimulação. Mas o balde e a vassoura ficam ali, nos contemplando e atentos às desculpas que vamos dar. Resistimos enquanto nossas desculpas fizerem sentido e enquanto o tempo se disfarçar de nosso cúmplice. Mas a poeira ali, descortinada pelas luzes que acendemos porque escondemos o sol, nos faz ver que o nosso querido Noel tinha razão: uma faxina precisa ser feita. E rápido.

Faxinar é uma arte, não é para qualquer um. É uma disposição dirigida para o fazer, sem saber se chegaremos a algum lugar. Enquanto faxinamos, reencontramos poeiras, teias, velharias, inutilidades e espaços ocupados pelo desnecessário. Mas também encontramos objetos e alegrias escondidos que merecem destaque na nossa bela decoração. Reorganizamos prateleiras, sobram espaços e nossos significados começam a tomar forma.

Enxergar nossos cantos e nossos arredores significa sermos o artesão da nossa obra. E a nossa matéria prima é a nossa singularidade. É nisto que nos diferenciamos. Somos singulares e precisamos fazer as pazes com tudo o que nos trouxe até aqui. Faxinar é traduzir as interpretações que indicam caminhos, que reforçam sentidos e nos dão a direção.

É preciso amar nossos labirintos e incompletudes porque serão eles quem nos levarão a outras janelas e a outros caminhos. Nossos labirintos esquisitos e desconhecidos nos afastam da integridade, que é a coragem de carregar a nós mesmos, independentemente da roupa que estivermos vestindo.

Dar voz e rosto para as nossas dores é aceitar o convite da faxina. Reencontrar os nossos hiatos que foram provocados pelas nossas ausências. Somos ausentes de nós mesmos e frequentes nesta prática.

Não podemos ir pelo campo do “eu já sei”. Não podemos replicar modelos de reprodução, de repetição. Seguir o script sem questionar nos leva ao imobilismo. Por isso, nos assustamos com a visita do nosso querido Noel.

Scripts são domesticadores e não incentivadores de outros pensamentos e construções. Não buscamos construtores, mas sim, seguidores de regras prontas e estabelecidas geralmente por pessoas que desconhecem o que verdadeiramente importa.

O mundo pede outros papéis. Aqueles que não estejam no script. Faxinar é alcançar este patamar de pensamento e saber que é preciso caminhar e avançar. É preciso transgredir as regras, se assim for necessário, o que significa, muitas vezes, sair do script. Desobedecer. Quando nos apropriamos do nosso balde, da nossa vassoura e seguimos para a faxina, certamente desobedeceremos àquele que luta pelo nosso adiamento.

São inúmeras as saídas, mas muitas vezes não temos a chave de nenhuma das portas. Por isso, é imprescindível a faxina. Um ser alienado não se conhece. Quer fazer passos aéreos, no entanto, o convite da vida é por passos térreos e firmes. Uma faxina. A arte de faxinar.

O convite está colocado sobre a mesa, aliás sobre o balde e a vassoura. O que se busca é seguir. A vida jamais pedirá para pararmos. A vida não é apostilada. Não possui um formato.

Pode ser que tentem interromper a nossa faxina, principalmente nesta época do ano que costumamos ter mais afazeres ainda. Mas será preciso seguir com o trabalho. Sempre vale a pena. A faxina cansa. Mas somente a gente sabe fazer. É um trabalho indelegável.

Quero encerrar este texto, mas não a reflexão, com um pensamento de Buda, que diz:

“Não é possível seguir o caminho antes de ter se tornado parte dele.”

A visita do nosso querido Noel era para isso: para nos lembrar deste valioso trabalho a ser feito. Faxinar é nos apropriar e nos tornar parte do nosso caminho. Somente depois disto, poderemos abrir aquele pacote que ele nos deixou. Que sejamos atenciosos com o tempo, com o passar dele e com os pedidos que ele nos faz.

A fluência da vida, e na vida, nos faz conquistar condições para preenchermos os buracos que criamos ao fecharmos as portas para o sol e para o nosso querido Noel.

Que a gente busque, sem descanso, o nosso brilho e renuncie àquilo que nos explora. Fácil caminhada não será. Mas somente a atitude de buscá-la nos deixará mais próximos dela.