domingo, 19 de abril de 2015

Só podia ser...

Num dia desses, saindo de um compromisso e voltando para a minha casa, tomei um ônibus e, como ele estava cheio na parte de trás, resolvi me sentar na frente, em um dos bancos disponíveis. Desta forma eu não precisaria ficar em pé, desconfortável.

Sentei-me tranquilamente no banco, enquanto o motorista do ônibus aguardava a subida de todos para que ele pudesse seguir.

Até aí, tudo bem, cheguei até a abrir o meu livro para ler algumas páginas. Mas foi só um pensamento rápido: o motorista deu uma arrancada naquele ônibus, que até o mais hábil dos leitores ficaria impossibilitado de ler sequer um parágrafo. Mas enfim...

Fechei o livro e me segurei ali, torcendo para chegar logo o meu ponto. Tomar ônibus, hoje, é uma aventura não muito agradável.

Após uns cinco minutos mais ou menos, numa rua bastante movimentada e com muitos carros, o motorista começou a ficar impaciente e demonstrava muita pressa. E começou a frear bruscamente em relação ao carro da frente, fazendo uma pressão para que ele saísse e desse a passagem. Lembrando que era uma rua comum, sem o corredor dos ônibus, ou seja, o motorista da frente não estava infringindo regras, estava dirigindo mais devagar porque o fluxo não permitia. Mas o difícil era aquele motorista entender isto.

De repente, o mesmo carro da frente que o motorista estava pressionando entrou numa garagem de uma loja sem dar a bendita seta...O motorista do ônibus freou bruscamente. Deu para ouvir até umas pessoas atrás dizendo: “nossa, que horror!”  E aí, o motorista buscou seu cúmplice pelo espelho retrovisor (o cobrador!) e disse: “Só podia ser mulher!” E o cobrador, com um sorriso que dizia “já sabia”, disse: “Lógico!”

Como se não bastassem os dois comentários, um passageiro (um senhor dos seus 75 anos) balançou a cabeça e disse: “É mulher, não é?” E os dois disseram: “É, é, não tem jeito, é mulher, só podia ser....”

É redundante falar sobre a questão do preconceito contra a mulher, estereótipos, modelos mentais, etc. Não que eu seja uma feminista de plantão, mas será que SÓ porque era uma mulher, já estava condenada a errar?

Para eles, acho que sim.

Levantei-me do banco no qual eu estava comodamente sentada e fui para trás. Lembrei-me de uma matéria que havia lido há algum tempo falando justamente sobre as imprudências no trânsito.

Veiculada pela rede Gazeta, logo no título, lia-se: “Batalhão de Trânsito comprova: mulheres são mais prudentes no volante”. De acordo com o texto, só no ano de 2013, dos 26.288 acidentes registrados na cidade de São Paulo, apenas 20,82% foram provocados por mulheres, o que equivalem a 5.474 colisões.

Para o educador de trânsito Rodrigo Ramalho, habilidades emocionais femininas, como a de empatia, altruísmo e o instinto protetor, auxiliam as mulheres no enfrentamento dos grandes desafios do trânsito atual, desmistificando o preconceito histórico sobre o mal desempenho das mulheres no trânsito.

E a matéria trazia mais informações inclusive falando que apesar de as mulheres serem mais cuidadosas e prudentes ao volante, este cenário pode mudar em função da necessidade de superação, de as mulheres terem, a todo o momento, de provarem a sua capacidade. E esta pressão poderá torná-las mais agressivas. O artigo ainda alertava para a necessidade de manter estas raízes de cautela e de cuidado.

Acho que aquele motorista não tinha lido ainda esta matéria…. ironias à parte....

O comportamento daquele motorista me chamou a atenção, basicamente, sob dois aspectos:

- o preconceito: ainda estamos muito longe de enxergar as pessoas, de sair um pouco do nosso umbigo, ou será que aquele motorista era algum exemplo de bom condutor para ousar falar de alguém? Ainda por cima de forma preconceituosa e retrógrada. Ele a desqualificou como ser humano... “só podia ser mulher”... ou seja, as mulheres estão condenadas a errarem, na sua triste visão;

a cegueira: como somos cegos diante os nossos defeitos! O motorista apontou, sem pensar, o dedo para a mulher mas ele mesmo dirigia pior! Rotulamos as pessoas! Porque é mulher, porque é pobre, porque é negro, porque é morador da zona a ou b, porque é estudante de escola pública, porque é funcionário público, porque é taxista, porque é motoqueiro, porque é mãe solteira, porque é homossexual. E enquanto isto os nossos defeitos morais ficam escondidos... Quem somos nós para falarmos dos outros? Acho que nem a gente sabe.

Fiquei naquele ônibus uns vinte minutos. E observando a conduta daquele motorista, vi um verdadeiro show de horrores: freadas bruscas, ultrapassagens perigosas, falta de respeito, desrespeito à sinalização e mais algumas coisas que não valem a escrita.  Mas como ele não é mulher, acho que na cabeça dele estava tudo bem...

Vi ali uma pessoa vaidosa, cheia de preconceitos, cega para as suas necessidades.

Mas como não somos perfeitos, aliás estamos bem longe disto, as pessoas começaram a comentar umas com as outras todas aquelas barbaridades que o motorista estava fazendo. E aí, ironicamente, uma mulher disse: “é motorista de ônibus...” e a outra disse “só podia ser....”

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